sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Uma leitura do livro Autismo e Escapismo




Ler o livro “Autismo e escapismo” (Desiderio Pires Silveira, 2013 editora  Scortecci)  foi uma experiência muito gratificante para mim. É o segundo livro que leio no qual o autor é pai de um autista que conta suas histórias. O primeiro livro que li, “Autismo no Brasil, grande desafio!” (Ulisses Costa, 2013 editora WAK),  tem um caráter mais político, sobre a lutas dos pais para conquistar os direitos de nossos filhos. Também conta histórias sobre pais e filhos, famílias e diagnósticos, mas com o foco mais informativo.

Já “Autismo e escapismo” narra essas histórias em formato de crônicas, o que nos permite viajar para o universo destes personagens, tão reais quanto nós. A gente ri, se emociona, se surpreende, pois são histórias muito parecidas com as nossas, que temos uma criança autista.

Acho muito importante essa identificação, reconhecermo-nos como membros da sociedade, percebermos que somos muitos, e que não estamos sozinhos.

Este livro conta histórias vividas há 30 anos, e isso permitiu que eu me reconhecesse não só nas questões de ter um filho autista, mas também de reviver alguns momentos históricos do Brasil significantes de minha vida. Eu estava lá, eles estavam lá. Todos vivemos por estes dias.

Ter um filho autista hoje é difícil, pois encontramos mil e uma dificuldades sobre como tratar as terapias adequadas, médicos, medicamentos, e a angústia pelo espera da Ciência em nos dar respostas sobre as mais diversas situações que surgem nas pessoas com TEA. Mas, sem dúvida, há 30 anos essas questões carregavam uma sombra muito maior. Mas Desiderio e sua família se saíram muito bem, pois não há cura, não há remédios. Há AMOR e dedicação.

Quando comprei o livro, pensei que a palavra “escapismo” vinha daquela relação do olhar dos autistas, que às vezes parecem distantes, como se o pensamento deles “escapasse” da realidade que os cerca. Mas me enganei. São escapismos pois crianças autistas são especialistas em escapar de nós. Essa foi outra identificação que tive com as crônicas. Comecei a reparar mais nas constantes escapadas do Léo.
Lembrei-me da primeira fuga. Estávamos numa reunião de amigos, que faziam um “chá bar”, pois iriam se casar. Levei uma comidinha para o Léo e, quando acabou de comer, fui lavar a colher. 

Apenas virei as costas e, quando retornei, ele não estava mais lá. Passei rapidamente os olhos pelo salão de festas e não o encontrei. Fui no salão ao lado, mas estava vazio. Fui para fora do salão, onde estavam algumas amigas conversando, e vi que o Léo não estava com elas. Passei entre elas e, numa fala desesperada, acho que gritei ou sussurrei (não me lembro ao certo ): “O Léo sumiu!”.

Uma das convidadas ouviu e imediatamente replicou para as outras, e começamos a procurar. O Ale estava dentro do salão conversando com os amigos, e o chamei de longe mesmo, avisando que o Léo havia sumido. 


Começamos as buscas. Não tenho ideia quanto tempo foi. Uma de minhas amigas disse que foi rápido, mas para mim foi bem demorado. O Condomínio era enorme, principalmente para uma criança de 2 anos e meio. Minhas pernas estavam moles.

Foi quando uma das convidadas da festa, que também estava na busca, ouviu um choro e viu que ele vinha de dentro de um elevador. Ela apertou o botão, a porta abriu, e o Léo estava lá, assustado, mas são e salvo. Havia entrado no elevador e a porta fechou automaticamente deixando ele preso lá dentro.
Isso não o deixou traumatizado nem de elevador, nem de outros escapes. Portanto, ler esse livro foi importante para mim, pois essa é uma das caraterísticas que temos que ter muito cuidado, principalmente nesta fase que ele ainda não sabe falar.

Sobre o caminho de buscas por terapias descrito no livro, também me identifiquei. Mas, como disse, naquela época as informações eram mais escassas. A grande lição é que, mesmo diante destas dificuldades, estes pais foram buscar – e buscam até hoje – terapias e tratamentos que ajudaram a criança, o jovem e hoje adulto DH. Em momentos diferentes dos estágios da vida temos que buscar e, principalmente, compreender o que é melhor para o indivíduo e sua família, sempre levando em consideração todas as subjetividades e limitações. Tudo isso se manifesta ao longo do livro.

Desidério, no decorrer de suas crônicas, faz vários questionamentos a respeito do autismo e das situações narradas. Conforme lia, respondia ou tentava responder mentalmente cada questão proposta. Foi um ótimo exercício, tanto para se colocar no lugar deste pai e da época em que narra suas histórias, quanto para perceber situações minhas vividas com o Léo e o autismo.

Recomendo a leitura deste livro a todos os pais e familiares e amigos que convivem com nossos grandes Escapistas. 


domingo, 25 de outubro de 2015

Feliz aniversário feliz


A festa de aniversário de um ano é mais uma tradição e um evento social para os pais celebrarem com parentes e amigos do que para a criança, já que ela não tem muita compreensão do que está acontecendo à sua volta. Os convidados são pessoas próximas, e outras às quais queremos apresentar nosso filho amado e lindo para a sociedade.

Já no segundo aniversário as crianças estão mais espertas, e o mundo do consumo já absorveu essa esperteza, oferecendo aos pais decorações de todos os desenhos e personagens que as crianças gostam. Há uma falsa ideia de que a criança está escolhendo o tema de seu aniversário, enquanto, na verdade, o mundo sedutor do consumismo já fez isso antes, apenas induzindo ou manipulando a verdadeira opção de escolha  da criança.

Tudo bem a criança escolher como vai querer alguns detalhes de sua festa, como os sabores dos doces, a cobertura do bolo e até mesmo alguns enfeites, mas o tema central não deveria ser o Peixonauta, a Peppa ou a Galinha Pintadinha, e sim a bela criança em sua plena infância. Essa indústria do consumo nos convence que a criança escolhe, enquanto na verdade, aniquila potenciais de criatividade. E essa crítica não é para você que lê esse texto, é para mim. O aniversário do Léo de 2 anos teve como tema o Peixonauta.

Nesta mesma ideia de ter que escolher tema para a festa, pensamos, no 1º aniversário do Léo, o quanto seria difícil escapar dos tão famosos “temas”. Então, como ele ainda não tinha a capacidade para escolher, fizemos uma festa tendo nosso estimado Saci como tema. Por quê? Porque eu adoro Sacis, e meu saudoso avô Adelino me contou certa vez que viu um, e acreditava piamente nisso. É o suficiente para o Saci fazer parte da minha história. Nós mesmos fizemos os enfeites, contando com ajuda de alguns familiares. Convidamos bastantes amigos.

Nessa época o Léo ainda não andava, e não tinha nenhum dentinho. Era um bebezão lindo. Adorou a hora do parabéns. Foi no colo de todos convidados, tiramos muitas fotos. Ele estava muito alegre neste dia.



Já no aniversário de 2 anos, tínhamos acabado de mudar de casa, o orçamento estava mais apertado, e já estávamos com a pulga atrás da orelha a respeito do comportamento atípico do Léo. Diante da correria com a mudança, foi muito mais prático ceder às regalias dos buffets e seus temas de aniversário. Escolhemos o Peixonauta, pois era um desenho que o Léo adorava. Fizemos a festa no salão de festas da casa de meus pais, como no primeiro ano.

Neste aniversário o Léo só correu. Não deu a mínima para os convidados. Tínhamos que “laçá-lo” e carregá-lo no colo para conseguir tirar uma foto ou mesmo oferecer um copo d’água. Enfim, ele estava super agitado. Na hora de cantar parabéns, não demonstrou a empolgação do ano anterior. Ficou apenas olhando para as pessoas, tentando compreender o porquê daquela cantoria.
Este aniversário de dois anos foi muito estranho, pois deixamos tudo nas mãos de um buffet, e acabamos não curtindo como no ano anterior, onde que ficamos alguns meses antes preparando as coisas, produzindo enfeites, lembrancinhas...

Após a festa de 2 anos, mais especificamente no dia seguinte, a coordenadora da escola que o Léo tinha começado a frequentar a pouco menos de 2 meses nos chamou para dizer que ele tinha caraterísticas de autista, e que era para investigarmos, como já contei nos textos A queda e Sem Chão. Não deu tempo nem de curtir esse aniversário. O 2º aninho do Léo foi intenso, onde passamos por tudo que já narrei em textos aqui do blog, além de coisas que não convém narrar.



(foto do parabéns de 2 anos)

Quando ele estava prestes a completar 3 anos, estávamos quase certos de seu autismo, mas ainda nos agarrávamos em fios cada vez mais tênues de esperança, que o diagnóstico iria em breve dissipar.
Devido a isso, no 3º aniversário novamente escolhemos um tema comercial para a festa. Dessa vez foi a inescapável Peppa. Mas decidimos não contratar um buffet que trouxesse a decoração. Compramos um “kit festa” padrão mesmo. Convidamos novamente todos os familiares, mesmo aqueles com os quais não temos muita convivência, colegas de trabalho e a turma toda de amigos mais próximos. Lotamos o salão do prédio.

Olhando hoje, mais distanciada daquele momento, percebo que algo dentro de mim já pressentia que aquele seria o último aniversário planejado como uma mãe de criança neurotípica. Foi um desejo meu ter todos por perto, como se meu Leonardo estivesse fazendo seu 1º aniversário. Algo que  fazia me apegar a uma última esperança, de que meu filho não era autista, que ele iria falar logo, e que todos em breve esqueceriam aquela fase. Dói um pouco assumir isso, pois hoje amo-o exatamente como é, aceito sua condição de autista, e apenas quero que ele possa aprender a desenvolver todo seu potencial, como qualquer mãe com qualquer filho. Acima de tudo, luto para que respeitem sua diferença.

Nós sempre passeamos bastante com o Léo. Antes mesmo de completar 3 anos ele já tinha ido em diversos shows, peças de teatro, festas e exposições como a do Cândido Portinari e do Stanley Kubrick, lugares bastante cheios e movimentados. Sempre fizemos questão de colocá-lo ele em contato com diversos mundos, e tivesse acesso a diferentes expressões culturais.

Mas a festa de 3 anos nos revelou algo muito comum em crianças dentro do espectro autista: não saber lidar com os olhares e atenção dos outros sobre eles. O autismo dele estava lá, para quem quisesse ou pudesse ver, independentemente de qualquer diagnóstico.

Era uma noite fria de final de inverno, e por esse motivo tivemos que ficar dentro do salão de festas. O salão do prédio se divide em dois ambientes, e os dois estavam tomados por ruídos típicos de uma festa infantil, das vozes e risadas dos convidados. Em um ambiente estava tocando música, e no outro a TV passando clipes da Palavra Cantada. Diferente de outros lugares que o levamos anteriormente, daquela vez todos queriam sua atenção, cumprimentar, tirar foto, pegar no colo, enfim. Ele era o tema, e não a Peppa.

Mas para ele aquela atenção toda estava beirando o insuportável. Não aguentava ficar dentro do salão. Durante grande parte da festa meu pai ficou com ele na área comum do condomínio. Iam para o playground, onde só havia crianças e menos ruído. Mas, como estava frio, tivemos que trazê-lo para dentro e fechar a porta para que ele não saísse mais do salão. Foi uma péssima ideia, confesso, mas no momento pareceu correta.

Tentamos fazer ele se acalmar, mas o pandemônio da festa não tornava essa tarefa fácil. De repente minha mãe me perguntou: “Cadê o Léo?”, e eu, que havia desgrudado os olhos dele por apenas um minuto, não soube responder. A porta ainda estava fechada, então ele tinha que estar no salão. Corri os olhos rapidamente por todos os cantos, e nada. Fui até o banheiro feminino e não o encontrei. 
Quando estava prestes a entrar em pânico o encontramos no chão do banheiro masculino, deitado de bruços embaixo do armário da pia, escondendo-se do barulho da festa. Aquilo partiu meu coração.

Levei ele até o salão e coloquei-o para assistir alguns clipes da Palavra Cantada, o que ele fez por bastante tempo, sem dar mais nenhuma atenção a nada nem ninguém à sua volta, e isso o acalmou. Percebi que isso incomodou algumas pessoas, que chegaram a sugerir que eu desligasse a TV, assim quem sabe ele deixaria de ignorar a festa, pois era como se a TV o hipnotizasse. Mas, na verdade, a TV foi a fuga para um lugar mais confortável dentro dele. Tanto que, quando o tiramos da frente da TV para cantar parabéns, ele se enroscou no pescoço do pai, e depois no meu pescoço, se recusando a olhar para as pessoas em volta da mesa. Também não quis soprar as velinhas. Temos apenas uma foto para o álbum em que, por sorte, o fotografaram de frente para a mesa do bolo. Nas outras fotos ele está grudado no nosso colo, sem querer ver o parabéns.




Com exceção da minha mãe e do Ale, ninguém nunca comentou ou conversou comigo sobre este dia. Principalmente sobre esse momento. Não sei exatamente o que as pessoas viram ou acharam. Mas ali meu coração ficou em caquinhos.

E, naquele momento, com todo respeito do mundo ao meu filho, prometi que nas próximas festas faria as coisas para ele, e apenas para ele. Seu aniversário seria seu aniversário e, não mais um evento social. Quando chegou a época de planejarmos a festinha para comemorar os seus 4 anos, nosso mundo já era outro. Já tínhamos o diagnóstico. Enfrentamos tantas lutas até aquele momento, e sabíamos que muitas outras ainda estavam por vir. Mas isso não poderia nos impedir de comemorarmos seu aniversário, e que o Léo se divertisse com isso.

A primeira decisão foi que a festa teria apenas os convidados que o Léo tem mais convivência. Essa foi uma decisão difícil, pois diversas pessoas por quem temos um imenso carinho ficariam de fora, e não gostaríamos de magoar ninguém. Mas o Leonardo é prioridade. Sua festa de aniversário teria que começar a fazer sentido na sua vida.

Segunda decisão: nada de temas comerciais ou consumistas. A festa seria planejada especialmente para ele e suas particularidades. E, mesmo assim, não sabíamos se ele iria perceber que a festa era sua, que era para celebrar sua vida e, principalmente, para que se divertisse. Mas iríamos tentar.




Terceira decisão: faríamos tudo nós mesmos. Sem buffet contratado. Como nos bons e velhos tempos, onde nossas mães faziam tudo. Como eu trabalho fora, tive que contar com a valiosa ajuda de um casal de amigos, de minha mãe e de minha tia, que tradicionalmente faz nossos bolos de aniversários serem aclamados após o parabéns.

Quarta decisão: chamaríamos algumas crianças do prédio, aquelas que convivem com o Léo, e principalmente respeitam e cuidam dele toda vez que descemos para brincar no playground ou na piscina.

E, por fim, a decisão mais acertada: fizemos as pistas visuais referenciando todos os convidados. Como leram no texto A ponte épara atravessar, estamos fazendo um quadro de rotina, onde o Léo coloca as atividades que serão realizadas no dia. Nos finais de semana, antes de sairmos para qualquer lugar, colocamos neste quadro as pistas visuais com os rostos e nomes das pessoas que vamos encontrar. Essa medida ajudou muito a diminuir o grau de ansiedade dele quando saímos de casa.
Preparamos um painel no salão de festas e colocamos acima da pista visual do bolo a foto dele, e o orientamos a colocar as pistas com a imagem de cada convidado assim que eles chegassem.

Foi muito bonitinho. Para cada convidado que chegava, dávamos a respectiva pista visual, que ele entregava para o Léo. O Léo então pegava a pista e a colava ao lado da dele ou do bolo no painel, dava um beijo nos recém chegados, e depois voltava a brincar.



Também alugamos uma cama elástica. Esse foi meu presente para o Léo. Ele adora brincar no pula-pula e na cama elástica, mas todas as vezes que saímos, ele encontra a maior dificuldade em brincar nesses brinquedos. As crianças desconhecidas não entendem que ele é um menino especial, que não entende regras, e deixá-lo “furar” a fila é romper com um paradigma fundamental do universo infantil. Então, na maioria das vezes, ele chora, pois não entende que tem que esperar sua vez. Geralmente ele faz uma birra, grita, chora, se joga no chão, e isso atrai os olhares das pessoas que não nos conhecem, olhares cheios de pré-julgamentos, taxando-o de “criança mal educada” e nós de “pais que não educam”. E mesmo quando ele consegue entrar em um pula-pula, dependendo de como as crianças estão brincando, ele não consegue ficar de pé, e muitas vezes sai frustrado, irritado, e propenso a mais birras e choros. A respeito dos olhares julgadores, sempre que consigo dou um jeito de informar aos desavisados que o Léo é autista, e não mal educado. E em todas as vezes as pessoas resignificaram seus olhares, o que reforça a importância de lidar com essa situação sem vergonhas ou recriminações.
Desde que fiz o curso sobre ABA (Analise Comportamental Aplicada), aprendi a lidar melhor com esses momentos disrruptivos. Mas ainda assim não é fácil. Por este motivo ficou decidido que no seu aniversário ele teria a cama elástica e reinaria sobre ela. E foi assim.



Fiz também uma mesinha de atividades, com papéis, cola, tesoura, lápis de cor, adesivos e um varal com prendedores coloridos, para que as crianças pendurassem suas artes. Deixei bexigas soltas no chão do salão e outras penduradas. Fiz algumas coisas sem glúten para que o Léo pudesse comer à vontade. Fizemos cachorros quentes, barquinhas de maionese e encomendei salgadinhos. Minha mãe e minha amiga fizeram os docinhos e, como já disse, minha tia fez o bolo. E nada de garçom servindo. Foi tudo como era antigamente nas festas de crianças de famílias mais humildes e mais felizes.

As crianças brincaram muito. O Léo brincou muito. Estava super feliz. Não saiu nenhuma vez do salão. No parabéns até deu uma assoprada tímida na velinha. Brincou tanto que tivemos que buscar o carrinho de passeio para que ele descansasse, e no fim da festa estava dormindo pesado.



Quando todos foram embora, ficamos apenas nós três: o Léo dormindo, eu e o Ale. Nosso peito estava transbordando de alegria. Tivemos que organizar tudo antes de subir para o apartamento, mas fizemos isso dançando, cantando, felizes, sem cansaço ou esgotamento. Sabe aquela sensação de felicidade plena? Era o que sentíamos.

Proporcionamos para nosso filho um entendimento de que todos estavam ali para brincar com ele e celebrar suas conquistas. A alegria dele quando viu suas terapeutas entrando no salão foi sensacional. Foi como se corações saíssem dos seus olhinhos em direção a elas, como nos desenhos infantis. Vou guardar aquele olhar de alegria e amor na minha memória para o resto da vida.

Cada autista é de um jeito. Têm aqueles que não gostam de muitas vozes ou de música alta; há aqueles que não gostam de bexigas ou papel de presente, que não gostam de toques, ou tudo isso junto. Por isso as festas de aniversário são sempre um dilema para nós, mães, pais e familiares. Mas, mesmo assim, de alguma forma temos que celebrar a vida de nossos pequenos. Temos que enxergá-los, fazer essa celebração por eles, e não apenas como um evento social compulsório. Afinal essa é especificamente a grande dificuldade deles: o social.

Então, por eles vamos romper com algumas convenções sociais. Faremos de nossas crianças o tema de suas festas, e faremos a comemoração de um jeito que elas curtam e se divirtam. É o mínimo que podemos proporcionar.

Uma semana depois do aniversário do Léo assisti a um vídeo na internet onde uma mãe de uma criança autista distribuiu ráfias coloridas para os convidados. Eles agitaram as ráfias ao invés de baterem palmas, e cantaram o parabéns numa versão bem calma. O garotinho ficou tranquilo e, dava para perceber, super feliz.

E é assim que vai ser daqui pra frente. Temos que nos reinventar, desafiar conceitos estabelecidos em nome de uma realidade diferente. Nem sempre saberemos se vai dar certo ou não. Mas uma coisa eu aprendi: minha prioridade é o Leonardo, e espero que as pessoas compreendam que não é nada contra elas, mas a favor de meu filho. Tudo o que eu quero é ver sempre aquele sorriso de alegria, aquele pé descalço sujo de tanto brincar com os amiguinhos. Eu quero que meu filho esteja inteiro em suas festas. Se ano que vem precisar ser diferente, diferente será. Mesmo sem a certeza de que tudo sairá tão bem quanto neste ano.

Mas quem tem certeza?



domingo, 13 de setembro de 2015

A ponte é somente para atravessar


A ponte não é de concreto, não é de ferro
Não é de cimento
A ponte é até onde vai o meu pensamento
A ponte não é para ir nem pra voltar
A ponte é somente pra atravessar
Caminhar sobre as águas desse momento

A Ponte, Lenine


 Desde criança brinquei com primos e filhos bebês de vizinhos de: “janela, janelinha, porta, campainha” e apertava o nariz da criança para ela emitir o som da campainha. Sempre achei que fosse fazer essa brincadeira com meu filho quando chegasse a hora.

Mas o Léo nunca se interessou por essa brincadeira. Hoje, com mais clareza de sua condição TEA (Transtorno do Espectro Autista), entendo os motivos. A criança com TEA olha cada parte do rosto separadamente, e não o rosto inteiro, dificultando o entendimento das expressões da outra pessoa à sua frente. Outra coisa que aprendi foi sobre a teoria dos neurônios-espelho. Estudos de imagem funcional revelam que os autistas tem uma redução na atividade cerebral do córtex motor. O que isso quer dizer? Que quando uma pessoa faz um gesto ou uma careta a pessoa que observa tem a mesma atividade cerebral nos seus neurônios-espelho. Quando é um autista que observa, seus neurônios-espelho não respondem da mesma forma. Isso explica as dificuldades de imitação quando se quer ensinar algo para uma criança autista.

Uma das coisas que me frustrava como mãe era não conseguir sentar no chão e brincar com meu filho. Ele brincava sozinho. Qualquer interferência em alguma brincadeira que estava fazendo gerava uma birra. Arremessava os brinquedos, se jogava chorando ou saia correndo bravo pela interferência. Às vezes, eu e o Alê nos sentávamos no chão com algum brinquedo e começávamos a brincar entre nós para ver se ele se interessava. Ele ficava de longe observando por um tempo, e depois se aproximava destruindo tudo que estávamos montando, chutando e arremessando os brinquedos. Nem sempre essa atitude era raivosa, parecia que era o jeito dele interagir, mas qualquer tentativa de falar para ele como funcionava o brinquedo gerava uma birra medonha.

Ainda nas terapias, antes do diagnóstico, na sala de espera, eu ouvia ele chorando e fazendo birras. Outras vezes a terapeuta dizia: “Hoje ele brincou”. Teve uma vez que, a fono me disse: “Ele sentou no meu colo e brincamos de Pula-Pirata. Colocou todas as espadas e se divertiu quando o pirata pulou”. Tentei replicar isso em casa, e adivinha? Foi barril para um lado, pirata para outro, espadas arremessadas pra longe. Brincar era um estresse. Ele gostava de pular na cama, brincar de pega-pega, ser arremessado no sofá e de girar. Nada que exigisse demandas compartilhadas. Mesmo no pega-pega era sempre a gente que corria atrás dele, nunca o contrário.

Mas nunca deixamos de brincar ou tentar inventar brincadeiras. Meu pai, principalmente, sempre conseguiu brincar com o Léo. Usou direitinho a técnica Son-Rise de fazer o que a criança faz para conseguir criar uma ponte entre eles. O Léo sempre adorou brincar com o vovô, e a relação deles é a coisa mais linda.


Informação é muito importante. Comprei livros, aprendi teorias sobre abordagens psicológicas, métodos e aplicações de atividades lúdicas, e sempre passava o que aprendia para meus pais e todos que convivem com o Léo. Mas sentia que isso não era suficiente. No livro “Transtorno do desenvolvimento e da comunicação”, de Miguel Higuera Cancino, percebi o que faltava: transformar teoria em prática. Por isso procurei ajuda e fui fazer um curso de pais e de acompanhantes terapêuticos para pessoas com TEA.

O curso estruturou o conhecimento de minhas pesquisas. Começamos entendendo o que é ABA (Appplied Behavior Analysis) ou Análise Aplicada do Comportamento. Essa abordagem é indicada para crianças autistas, pois tem sua eficácia comprovada cientificamente em vários países no tratamento de TEA. No entanto ela também pode ser usada em tratamento diversos. A terapia comportamental consiste em modificar os comportamentos inadequados, substituindo-os por outros mais funcionais, principalmente no que se refere ao comportamento social, verbal e na extinção das birras.

No curso aprendi uma série de procedimentos comportamentais que criaram a possibilidade do Léo de fortalecer suas habilidades e aprender outras inexistentes, às quais chamamos de pré-requisitos. Esse aprendizado ocorre mediante a criação de atividades que, após realizadas, são reforçadas com premiações e elogios.

O curso consistia em algumas aulas teóricas, seguida por outra onde aprendíamos os procedimentos, e assistíamos vídeos para ilustrar como devíamos proceder em casa com nossos filhos. Tínhamos uma semana para aplicar o procedimento ministrado, registrar numa folha de analise funcional e, se possível, filmar para que as terapeutas pudessem analisar nossa aplicação e instruir nossa prática.
O primeiro pré-requisito é fazer a criança olhar nos seus olhos. Quando assisti ao vídeo demonstrando esse procedimento, que era feito com a criança sentada numa mesinha, eu ri dentro de mim. Seria impossível fazer o Léo sentar numa mesa e ainda pedir para ele me olhar. Já o imaginei arremessando a mesa, se jogando no chão e chorando. Mas, eu tinha que tentar. O primeiro passo era assumir o controle da situação. Fui até uma loja de móveis usados de madeira e comprei uma mesa de centro, destas dos anos 80, em que nos reuníamos para jogar jogo de tabuleiro. A mesa é bem pesada, e a finalidade era dele não conseguir arremessá-la com facilidade. Essas mesinhas de plástico de crianças iriam voar longe.

Para todas as atividades aplicadas temos uma folha onde registramos as respostas do que está sendo pedido para a criança. Quando ela faz algo que é certo, disponibilizamos para ele um reforçador, que deve ser algo que ele gosta muito. Aprendemos também uma técnica para avaliar quais objetos podem ser utilizados como reforçadores para a criança, e como usar esses reforçadores como estímulo adequado.

Existem também algumas etapas que devem ser cumpridas. As atividades evoluem de forma gradual, respeitando o ritmo da criança. Por isso existe uma série de repetições, de modo a averiguar quando podemos passar para a próxima etapa, quando a criança começa a fazer a atividade de maneira independente.

A primeira etapa é de Ajuda Física, onde fazemos a atividade junto com a criança, segurando sua mão ou, como no caso do treino do olhar, segurando sua cabeça para que ela estabeleça o olhar com você.  A segunda etapa é a Ajuda Leve, onde apenas damos o apoio de direcionamento. A terceira é a Ajuda Gestual, onde apenas apontamos o que é para ser feito. E, por fim, a quarta etapa, em que apenas falamos e a criança deverá realizar o que é solicitado de forma Independente.

Fazer com que a criança te olhe é fundamental para ensinar qualquer coisa, principalmente para as crianças com TEA que não conseguem compreender a linguagem verbal. O Léo não aponta, e até hoje não segue com os olhos o que apontamos para mostrar algo à distância. Hoje ele segue nosso apontar se for algo próximo, algo que pode acompanhar a expressão “aqui”. Se apontarmos com a expressão “olha lá” e for algo distante, ele não acompanha, não compreende. Por exemplo, ainda não conseguimos mostrar para ele a Lua. Não conseguimos mostrar para ele os cavalos ou vacas no pasto numa situação espontânea de encontro com esses animais. Outro dia estávamos indo para casa da minha tia em Itupeva, e pegamos uma estrada que acompanhava um pasto. Paramos o carro para mostrar os cavalos e vacas, apontando e nomeando cada animal, mas ele não se deu conta do que estávamos falando. Por essa razão a primeira coisa que precisamos fazer é treinar o olhar.

 Acredito nas teorias de Vigostky, quando ele fala na construção da linguagem como atividade de espécie humana a partir da interação verbal como mediadora, mas me desculpem os teóricos da educação que usam essa abordagem generalizando para as crianças com TEA, pois meu filho precisa muito mais do que isso. Ele não tem essa capacidade orgânica nata de adquirir a linguagem social através de mediadores. Ele precisa de outros estímulos para se desenvolver. Quem sabe um dia poderá voltar a esse tipo de educação, mas por hora vou pelo caminho que faz meu filho atravessar essa ponte sem exigir dele algo que suas limitações genéticas preestabelecidas ainda não permitem. E esse caminho é a de terapias comportamentais.

Para ilustrar o que estou dizendo, segue um dos primeiros vídeos que fizemos de ajuda física, para que ele aprendesse a olhar em meus olhos. Essa atividade me surpreendeu pois não houve tentativa de arremessar a mesinha. Logo passamos para a etapa de Ajuda Leve e Gestual. E logo depois pude realizar outras atividades que exigiam a concentração dele no meu olhar, como poderão ver.



A princípio é normal que as crianças com TEA apresentem resistência, mas também aprendi, com ajuda das terapeutas que davam o curso, a não ceder às birras ou tentativas de birras. As terapeutas assistiam aos vídeos do Léo e de outros pais que faziam o curso e analisavam situações que nós não poderíamos perceber.  Isso foi de grande ajuda, pois não devemos deixar que essas estimulações em casa se transformem em um campo de batalha. Temos que saber lidar com as frustrações deste aprendizado, e aprender a lidar com as birras, pois é muito difícil que crianças com TEA desenvolvam aprendizagem sem conflito ou frustração.

O Léo sempre apresenta resistência quando apresentamos uma atividade nova, mesmo que seja uma brincadeira. Como precisamos dar ajuda física nas tentativas, para quem está de fora observando pode parecer que estamos forçando a barra ou, para os mais leigos, que ele é um menino muito mal educado. Mas temos que seguir em frente. Alguns dias repetindo a brincadeira ou atividade e ele já consegue realiza-las sem birras e ainda se divertir.

Um dos módulos mais esperados do curso foi o do Brincar. Como é bom poder brincar com meu filho! Na verdade, todas essas atividades são feitas com muita brincadeira, com muito amor.  As famílias não são terapeutas, nem professores, mas somos o mundo natural e cotidiano dos nossos filhos com TEA. E sim, precisamos de formação e informação para ajuda-los a brincar compartilhado. E é de vital importância que as terapias comportamentais realizadas por especialistas sejam realizadas de um jeito amoroso, privilegiando estímulos afetivos, que devem se premiar com carinho cada gesto de comunicação alcançado pela criança. E posso dizer que o Léo é um menino com muita sorte, pois suas terapeutas são daquelas que colocam o amor e respeito como ingrediente especial.


Além da escola regular, o Léo faz terapia numa clinica que usa método TEACCH (Treatment and Education of Autistc and Related Communication Handcapped Children, que é um modelo de intervenção que busca a organização de materiais, espaço e de atividades para crianças e jovens autistas, para que possam desenvolver autonomia na vida adulta. Nesta clínica também utilizam um sistema de comunicação por meio de troca de imagens.

No curso também aprendi a organizar a rotina do Léo por meio de imagens, e como na clínica trabalham com um sistema de figuras para facilitar a comunicação (PECS), o Léo aprendeu muito fácil a organizar sua rotina do dia em casa.

Estruturar a rotina dele foi fundamental para diminuir sua ansiedade. Imagine-se numa situação de total imprevisibilidade como, por exemplo, toda vez que entra num carro. Como ele ainda não sabe se comunicar, não sabe para onde está indo (principalmente se for um caminho desconhecido), não sabe quem vai encontrar, nem o que vai ter que fazer. É quase como ser sequestrado várias vezes na semana. Estabelecer um quadro de rotina com imagens de pessoas que vai encontrar, lugares que vai passar, de coisas que vai fazer, e até mesmo o que vai comer, deu a ele o entendimento necessário para diminuir a carga de ansiedade.

As primeiras vezes que ele fez a rotina tive dar Ajuda Física bem controlada, pois não queria fazer de jeito nenhum, mas hoje todos os dias ele faz com o maior gosto. Num destes dias ele pegou a imagem da minha mãe e depois a imagem de dormir e colocou na rotina. Foi um daqueles momentos emocionantes, pois conseguiu expressar que queria dormir na casa da vovó. São momentos como esse que vão ficar guardados nas lembranças das conquistas.

Com o uso das imagens e da organização da rotina, ele pode expressar sua vontade e seu desejo, e esse tipo de comunicação é muito importante. Ele não fala, mas pode se comunicar e tem apreendido isso gradualmente.



Eu não pude leva-lo no dia em que pediu, mas no dia seguinte levei e fiz a rotina com ele, como mostrou o vídeo.

As terapias com o método TEACCH tem sido fantásticas. Aprendemos muito com as terapeutas, há muito dialogo entre nós, e elas também promovem um diálogo importante com a escola regular. Toda reunião de pais me surpreendo com as coisas que ensinaram para o Léo, e percebo que o que faço em casa é apenas uma continuação do que o Léo já sabe fazer.

Somos muito gratos pela dedicação desta equipe de terapeutas. Desde que o Leonardo entrou em tratamento, em fevereiro de 2015, foram muitas as conquistas. E o Léo simplesmente é apaixonado por sua terapeuta. Os olhos dele brilham quando a vê. Criaram um vínculo muito especial, e isso, para nós, é prova que podemos usar a terapia comportamental sem ser mecanicista e esvaziado, e que essa abordagem, quando bem elaborada, traz desenvolvimento do sujeito social e cultural para que possa adquirir linguagem e a sociabilidade.

 Dentre as conquistas alcançadas, temos o desfralde em abril/2015. Hoje estamos em setembro/2015 e há poucos escapes de xixi. Ele já tem ido muitas vezes sozinho ao banheiro. O cocô ainda está aprendendo, mas está menos resistente em sentar no vaso. Isso ainda vai levar mais um tempo, mas sabemos que ele vai conseguir.

Outras conquistas: ele já prende o velcro do tênis sozinho, tira a roupa sem ajuda, e coloca a roupa com ajuda leve. Virou um beijoqueiro, super afetivo, aceita muito bem o toque, seu contato visual melhorou muito, a ponto de vários amigos nossa família elogiarem a mudança de comportamento dele. Brinca mais compartilhado quando lhe interessa a brincadeira. Sem falar das birras, que ainda existem, mas diminuíram muito. Já não sai mais correndo desenfreado nos lugares. Ele corre, mas atende nosso chamado na maioria das vezes, ou então corre e dá uma olhada para trás para ver onde nós estamos. E só que tem uma criança com TEA vai compreender a importância disso.
 Alias, todas essas conquistas são realmente valorizados por nós, pois é muito difícil que uma criança TEA chegue a fazê-las de forma independente, da mesma maneira como é ensinado às crianças neurotípicas.

Tudo isso é um investimento caro. Tanto em tempo quanto financeiro. Pagamos a clínica, mas a fono é na USP e a escola é pública. Sobre a inclusão na escola pública farei um outro texto. A grande questão é que esses tratamentos deveriam ser oferecidos pelo governo. Não há mal nenhum que existam clinicas particulares. Mas sabemos que muitos pais não podem pagar. Nós mesmos tivemos que ajustar as contas e abrir mão de algumas coisas para poder bancar esse investimento em terapias. Estamos na luta, caminhamos juntos por essa causa, para que todos os autistas possam ter tratamentos de qualidade como direito e não como privilégio.

O fato é que, com mais ou menos recursos financeiros, não podemos pensar que apenas algumas horas somadas de Terapia Ocupacional, fonoaudiologia, psicopedagogia, entre outras, vão dar conta. Temos muito que brincar com nossos filhos, e esse brincar é ensinar e aprender.

Tudo o que nós pais conseguirmos estimular em casa, no cotidiano, como parte de um estilo de criação, fará com que a criança tenha mais preparação para progredir nas terapias e na escola, pois com uma criança estimulada os professores e terapeutas não perdem tempo ensinando o básico.
Embora nosso dia a dia seja cansativo, é possível desenvolver atividades estimulantes para nossas crianças de forma paralela ao nosso cotidiano. Temos que criar formas diferentes de estimular, adaptando-as para a realidade de cada um. E, quando digo estimular, digo que isso é amar, respeitar, estar junto, brincar, se divertir. Mas nós, pais de crianças com TEA, temos que manter um foco: o de atravessar a ponte.

Estamos em algum lugar na construção desta ponte. Aos 4 anos o Léo finalmente aprendeu a brincar de “janela, janelinha...”. E o resto, é só alegria.


quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Só quero saber do que pode dar certo




O diagnóstico precoce para os casos de autismo é fundamental. Ainda no período de investigação muitos médicos e especialistas já recomendam a intervenção de terapias, pois o quanto antes as estimulações começarem, melhor para o desenvolvimento da criança. As terapias vão ajudar independente do diagnóstico se concretizar ou não.

Quando o diagnóstico de autismo é dado, ficamos sem saber onde procurar atendimento, e ao procurar encontramos um cenário aterrorizante, pois há poucos lugares especializados, e mesmo nesses muitos são precários ou caros.

Descobrimos que existe uma lei que nos ampara, a leiBerenice Piana (LEI 12.764/12), que foi regulamentada em dezembro de 2014, mas ainda não saiu do papel. Passamos a constatar que, além do problema do nosso filho, iríamos ter que embarcar também numa luta para resolver alguns problemas sociais referentes à inclusão e tratamento. A existência da lei é fundamental, e temos que a propagar e exigir que nossos filhos tenham seus direitos garantidos.

Contudo, a questão inicial é: qual tratamento funciona? O que é ABA? Por que encontramos tão poucos profissionais atuando nesta área da psicologia? E por que muitos profissionais ainda torcem o nariz para esse tipo de abordagem? Que tipo de intervenções terapêuticas temos que exigir do governo para nossos filhos autistas?

Vou narrar nossa trajetória até aqui sobre esses pontos.

Diante do despreparo do CAPS infantil para o tratamento adequado do Leonardo enquanto criança dentro do espectro autista, fomos procurar terapias com abordagem em ABA, pois foi a única que encontramos dados científicos de eficácia, e vários países do mundo usam o ABA como tratamento de autistas. Então, por que ficar gastando tempo e dinheiro com terapias que não sei se darão certo?
 O momento da escolha de que caminho seguir é muito importante. Mesmo que sejam poucos os caminhos disponíveis, qualquer escolha irá mudar o ritmo de vida familiar, pois serão introduzidas diversas terapias, locais novos que irão frequentar e, obviamente, a rotina da família sofrerá um impacto grande. Quem vai levar? Quem vai buscar? Quais dias da semana? Encaixar os horários das terapias com os horários de trabalho, e o impacto com relação ao trabalho, pois, infelizmente, nem todas as empresas entendem que você vai ter que se ausentar para cuidar de seu filho deficiente. Algumas empresas chegam ao ponto de dispensar o funcionário que tem um filho nessa situação, causando mais um impacto na renda familiar. Outras causam um verdadeiro stress referente às cobranças pelas horas de ausência no período de trabalho. Tudo isso deve ser levado em conta na hora das escolhas.

Mas o mais importante neste momento é traçar objetivos bem definidos junto com médicos, terapeutas, família e escola. E, independente de qual tipo de abordagem for escolhida, saber que ter paciência é fundamental, pois vai ser um caminho longo e muitas vezes demorado, e que você vai ter que participar como mediadora deste processo, ou seja, saber que os resultados não dependem somente da relação da criança com os terapeutas, mas também da atuação dos pais e, acima de tudo, não se culpar pelas escolhas caso durante o caminho tenha que mudar o percurso.

Durante meu curso de graduação, estudei um pouco das teorias comportamentais para a educação, e sou daquelas pessoas que acreditam no ser humano como fruto de seu desenvolvimento histórico social, que constrói sua história. Portanto não me aproximei mais dos estudos comportamentais por achá-los mecanicistas e desconsiderarem a potência de transformação consciente de si e de suas escolhas. Afastei-me destas teorias por considera-las extremamente condicionantes e pensadas como positivas apenas para quem quer “dominar e controlar” as escolhas que interferem não só na subjetividade, como também nas relações sociais.

Mal sabia eu que um dia estaria educando meu filho com base nesta mesma teoria que no passado rechacei. Ao perceber que as abordagens psicológicas comportamentais eram as que tinham tido os melhores resultados com base científicas no tratamento de autistas, tive que me desfazer dos preconceitos causados por esse “afastamento” das teorias e voltei a estudá-las. Não só estudá-las, como aplicá-las em meu filho. E seu resultado foi transformador em nossas vidas.

Se pensarmos que a linguagem foi e é um fator fundamental para a humanização, para a transformação do homem-animal para homem-social, dotado de sociabilidade e produtor de culturas, percebemos que é exatamente isso o que falta no meu filho autista. Preciso, portanto, partir da premissa que ele precisa mais do que mediadores (outros seres humanos) para superar suas dificuldades. Nele há um quesito biológico que deve ser analisado. Ele precisa, sim, de outros tipos de estímulos, que não se dão apenas na relação com outros seres humanos. Ele precisa de reforçadores de troca para gerar interesse no que lhe é ensinado, ele precisa de muitas repetições para aprender, e precisa de mais um tanto de repetições para dar significado ao que aprendeu, pois há nele uma imensa dificuldade em elaborar signos (que, para o restante da humanidade, é praticamente inato).

Mas, o mundo está cheio de gente “esperta”, que não consegue abrir mão de suas concepções entorno do que estudou, ou do que acha o que é melhor para o filho dos outros. Descartam o tratamento ABA, como se o que propõe fosse dar mais certo, como se estivéssemos condicionando o nossos filhos a responder mecanicamente apenas quando lhe dão algo de seu interesse. Essas mesmas pessoas críticas e “espertas” esquecem que elas mesmas trabalham em troca de salário, ou mudam de emprego por um salário melhor, que matriculam seus filhos em instituições que as ensinam a estudar em troca de notas, usam fantasias como o Papai Noel e o Coelho da Páscoa para estimular o bom comportamento das crianças, retiram brinquedos, celulares, computadores de seus filhos quando estes não tem um comportamento que julgam adequado, etc. Eles podem condicionar, pois suas crianças entendem o condicionamento na primeira fala, na primeira situação, e assim não fica claro o quanto manipulam o comportamento. A única diferença é que, no caso de crianças autistas, a repetição evidencia o condicionamento de maneira mais explícita.

O ser humano deficiente expõe a verdade inconveniente que a humanidade não é normal. Meu filho deficiente mostra que você pode vir a ter um também, ou mesmo um neto. O deficiente escancara para a sociedade que ser deficiente é parte da humanidade, e a sociedade por milênios negou ser deficiente.
Há poucos profissionais especializados em ABA, pois, seguindo a lógica comportamental, trabalhar com deficientes ou fazer pesquisas acadêmicas sobre temas como estes não é algo que a sociedade privilegiou como status. Portanto,  não há estímulos (financeiros, status) que levem as pessoas para essas áreas. Muitas pesquisas científicas foram conduzidas e realizadas por médicos e outros especialistas que tinham ou têm filhos autistas.

Podemos observar então que, mesmo como sujeitos históricos conscientes, caímos nas questões de estímulo e resposta. Mas, por conta de algum ego acadêmico, muitos especialistas não querem se dar ao trabalho de retomar essa abordagem Comportamental e adaptá-la para o cenário educacional e terapêutico de autistas. Ficamos assim à mercê de abordagens psicanalíticas e de tentativas alternativas, e sem eficácia comprovada, para nossos filhos. E, mesmo nessas abordagens, são poucos os profissionais que se especializam em autismo, e muitas vezes estes especialistas são bastante caros. Em muitas cidades do Brasil são os pais que criam ONGs e buscam os recursos psicoterapêuticos e psicopedagógicos apropriados.

Espero sinceramente não precisar de terapias comportamentais para sempre. Espero que essa seja uma etapa na vida de meu filho. Espero no futuro poder usar outras teorias psicológicas e educacionais, como, por exemplo, as abordagens de Vigotsky e outras que possam contribuir para a formação do meu filho como sujeito histórico social, consciente que é produtor de sua realidade subjetiva, material e histórica, pois se isso acontecer o espectro do autismo do Léo será leve, dando a ele a funcionalidade da vida social de um sujeito adulto.

Hoje busco na terapia comportamental a independência do meu filho. Que ele saiba que pode se comunicar e se expressar enquanto não aprende a falar. Quero que ele aprenda a ir ao banheiro com autonomia completa, quero que ele saiba se alimentar, se vestir, tomar banho, escovar os dentes, colocar os sapatos. Coisas pequenas, mas que para nós, pais de autistas, é algo gigantesco. Cada conquista desta vai ficar marcada na memória com dia e hora.

Todo pai quer que, acima de tudo, seu filho seja feliz. E hoje eu sei que o Léo é uma criança feliz, principalmente porque agora ele passa menos tempo frustrado. Ele está aprendendo a se comunicar de forma alternativa. Sua ansiedade diminuiu, junto com suas frustrações. A felicidade não é algo espontâneo e inato. Uma criança estressada, frustrada e ansiosa por falta de compreensão do que acontece a sua volta, por falta de compreensão do uso da linguagem, fica tanto tempo aprisionada em si que há pouco tempo e espaço para a felicidade florescer.

Foi nesta prática da teoria comportamental aplicada que meu filho voltou a dar risadas, aprendeu a pular, a brincar compartilhado, a nos observar, nos imitar. Foi com este “condicionamento” de amor que ele voltou a ser uma criança que expressa sua felicidade.



A nossa experiência com terapias baseadas em ABA difere das criticas que dizem que é algo condicionante, mecanizado, memorizado e sem consciência produzindo ações mecanizadas. Quem conhece e convive com o Léo sabe que nem de longe seu progresso resulta em ações sem consciência e vazias de significados ou sentidos. Ao contrário, ele está dando sentido nas suas ações, tem se divertido com isso, tem reconhecido nossos signos de linguagem e dado significados para eles. Algumas vezes nos surpreende como aprende rápido. O Léo tem um comportamento amoroso, e podem ter certeza que esse amor não é condicionado.

As atividades que realizamos em terapia e em casa são repetitivas, são registradas, possuem etapas e hierarquias para a passagem de uma atividade para outra, e premiações. Evitamos o erro para reduzir a frustração e atitudes disrrupitivas. Às vezes parece que ele não vai aprender, e somos nós que saímos frustrados. Mas é por isso que existem as repetições, pois uma hora irá fazer sentido. E eu consigo distinguir no olhar dele quando ele aprende, dando significado, e quando faz para só ganhar o estímulo.

A Terapia em ABA recomenda no mínimo 20 horas semanais em terapias com especialistas e deve ser complementada em casa. Isso significa que os pais, irmãos e outros familiares também terão que apreender sobre a abordagem comportamental e seus procedimentos. É um engodo achar que as terapias darão conta das necessidades. O envolvimento da família deve ser total. Por isso que chamo essa maternidade de Fênix: tem dia que somos como cinzas de tão cansadas, mas renascemos a cada avanço. Somos mães e pais especialistas, somos militantes da causa autismo. Existem aqueles pais que só se importam com o seu próprio filho autista. Mas quem me conhece sabe o que penso de qualquer pessoa indiferente. Não sou assim, sempre tomei partido, e agora com meu filho não iria ser diferente.

As vezes fico muito frustrada pois há muita coisa para fazer, muitas atividades e nem sempre consigo por diversos motivos. O trabalho da casa, cozinhar sem glúten e sem caseína, o trabalho que trago para casa (tento não trazer, mas, como professora, isso é quase impossível). O Léo tem uma jornada longa entre terapias de manhã e escola à tarde. Ele chega em casa e se joga no sofá, cansadinho. Enfim, as cobranças são muitas, não damos conta de tudo, mas tudo que fazemos é com amor, carinho e muita, muita alegria.

Cada um escolhe seu caminho. Mas nesta luta pelo Léo e por outros autistas, penso que temos que lutar perante os Governos por clinicas com abordagem comportamental que sejam públicas e de qualidade. Os outros tratamentos, as outras abordagens, são sempre bem vindas. Mas sou cética, não vou neste momento de tratamento precoce buscar caminhos alternativos para o Leonardo. Infelizmente o problema maior neste momento social não é a escolha do caminho terapêutico. É que temos poucas escolhas e poucos caminhos.

Assim que recebemos o diagnóstico precoce, nos lançamos numa corrida contra o tempo, quanto mais adequado para o individuo autista for seu tratamento, mais chances de ser um adulto funcional.

E é exatamente por isso que quero saber do que pode dar certo.

Não tenho tempo a perder.



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No próximo texto falarei sobre como aprendi a aplicar os procedimentos com o Léo, nossas atividades, e sua evolução com o método TEEACH. 

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Autismo: o luto dos outros.




Já escrevi sobre a questão da elaboração do meu luto, sobre deixar para trás aquele filho idealizado, aceitar a nova realidade e seguir em frente, no texto Autismo não é saber jogar vídeo game. Mas lá não abordei uma outra questão: parentes e amigos próximos também têm seu luto quando descobrem que aquela criança querida, esperada desde o anuncio da gestação. Avós, tios, irmãos e parentes de um modo geral, que acompanharam os ultrassons para ver o sexo do bebê e se estava tudo bem, a escolha do nome, o chá de bebê, etc. Parentes e amigos que também idealizam a criança, e cuja idealização vem também cheia de amor. Amor que se cristaliza na criança assim que ela nasce.

Mas, ao perceber que a criança não responde a esse ideal cristalizado, precisam encarar as fases do luto. É muito comum parentes e amigos se negarem a enxergar as diferenças, perceberem e aceitarem que a criança não é o que idealizaram.
Muitas vezes por uma vida inteira.

Conheci dois jovens sem diagnóstico. Sempre penso em como foi possível que ninguém de sua família tenha visto que são diferentes, e que precisam de ajuda, pois a falta de socialização, somada com as dificuldades na comunicação e na compreensão do mundo imaginário, faz com que os praticantes de bullying logo entrem em ação, causando sofrimentos nestes jovens.

Mas daí percebo que não é que a família não tenha visto ou percebido que suas crianças são diferentes. Na verdade elas ainda não saíram da fase da negação dos estágios do luto. Perderam aquela criança idealizada, mas se recusam a aceitar, e negam o que para todos é óbvio.

Faço parte de um grupo fechado de mães de autistas numa rede social. E um dos temas mais frequentes que mães reportam é a falta de aceitação de parentes e amigos em relação às necessidades especiais de seus filhos. Algumas trazem relatos muito tristes, contando o quanto as pessoas foram se afastando. São histórias de rejeição, solidão e sofrimento.

Eu lia e pensava: “Isso não vai acontecer com a gente. Nossos parentes e amigos são tão humanos”. E é exatamente isso, o ser humano que sofre, cada a um a sua maneira, com seu luto.

A nossa postura, de aceitar e não ter vergonha de falar sobre a condição do Léo, facilitou para a maioria dos nossos amigos, pois eles viam as diferenças do Léo, e quando souberam o motivo foram acolhedores, e comemoram junto com a gente as suas evoluções a cada encontro. Isso é muito legal.

Teve gente que se afastou, sim. Mas teve gente que se aproximou.

Família tem aquele laço consanguíneo. Pude observar as fases do luto de alguns parentes que são bem próximos de mim. Em alguns momentos, principalmente durante a fase da busca por diagnóstico, eu vi as lágrimas de alguns familiares queridos caírem junto com as minhas. Em muitas ocasiões eles me ajudaram a enxugar essas lágrimas, e com isso foram passando, junto comigo, pelas fases do luto, em busca da aceitação.

Mas sofrimento é algo que não pode ser medido nem cobrado. E, nas fases do luto, existe a fase da RAIVA. E aquilo que eu lia no grupo das mães de autistas também caiu sobre mim, ou melhor, sobre nós.

O luto do outro, cheio de raiva, de palavras insanas que machucam e que adoecem nosso coração já tão cheio de feridas tentando cicatrizar para poder seguir em frente.

Nós, mães de autistas, já temos muita coisa para pensar. Temos que elaborar nosso luto e não esmorecer, o que já é muito trabalhoso. Não podemos perder tempo com o luto dos outros.

Sei que é difícil, mas muitas vezes a solução é se afastar destas pessoas neste momento, na esperança de que o tempo os ajude a lidar com isso. Temos que nos focar nos nossos filhos. E dar tempo ao tempo, para ver se essa raiva do outro vai passar e, se passar, decidir se estamos prontas para perdoar.

Somos humanas, e dói demais quando pessoas que amamos nos atacam com palavras cheias de raiva, mesmo que as palavras sejam ditas no calor do momento, num reflexo de seu sofrimento. Cada uma de nós tem seu tempo para resignificar tudo o que foi dito, e decidir se deve perdoar ou não. Cada uma de nós tem sua história.

O fato é que nós, pais de autistas, temos que, além de lidar com nosso luto, também temos que lidar com o desfecho do luto dos outros.

Tenho um amigo que também é pai de uma criança autista. Foi ele que me segurou quando passei por minha primeira crise familiar, onde ouvi palavras que nos machucaram muito.

Havíamos ambos sido julgados e condenados por sermos “culpados” pelo autismo de nossos filhos, ou qualquer coisa do gênero. Esse amigo me contou algumas de suas histórias e me aconselhou. Foi muito reconfortante ouvir as palavras de alguém que sabia exatamente o que eu estava sentindo. Mas o justo seria não termos que passar por isso.

Eu faço terapias, e recomendo que todos os pais e familiares responsáveis por crianças autistas também façam. Infelizmente, o mundo não está aberto para nós, e isso é um fato. Temos muitos desafios para enfrentar com nossos pequenos, e com o mundo lá fora. Nem sempre temos forças para tudo. Meu terapeuta costuma me dizer: “Respira na impotência.” Ou seja, não podemos mudar as pessoas. Mas tenho que nos proteger. Proteger meu filho, proteger meu esposo, proteger a mim. Nós somos o elo do Léo, o pilar que o sustenta neste momento. E precisamos ficar firmes.

Outro dia eu estava numa festa de aniversário, e uma criança de 2 anos me pediu ajuda para tirar a sandália, pois ela queria entrar no pula-pula. O Léo estava brincando no pula-pula, e eu estava por perto. A criança pediu para eu segurar sua mão enquanto ela pulava, pois tinha medo. Realmente ela era muito pequenininha e poderia se machucar, então eu a ajudei. Daí em diante essa criança grudou em mim. Ficamos juntas por meia hora, brincando nós duas, e às vezes eu conseguia fazer com que ela brincasse com o Léo. Foi quando percebi o quanto é fácil lidar com uma criança neurotípica. Ela veio até mim. Ela quis brincar comigo. Ela falava o que queria de mim. Ela olhava para mim.

Simples.

Brincar com o Léo não é difícil. Mas é você que tem que ir até ele. Ele não vai falar o que quer, mas ele quer o que qualquer criança quer: sua atenção. Quer brincar com você, quer que olhe para ele.

Simples.



Mas, para algumas pessoas, isso é muito difícil. Não estou cobrando nada de ninguém. Mas me dói muito ver que tem gente que ainda está preso em alguma fase do luto, que não encosta no Léo, não brinca com ele, não sabe nada dele, não sabe a alegria que é viver com ele. Doí ainda mais quando nos dizem, numa sinceridade arrebatadora, sobre a tristeza que causamos por ter uma criança assim.

Estou escrevendo esse texto porque isso é de matar, para não falar um palavrão. Não gosto de generalizar, mas esse é o tipo de situação que todo pai de criança deficiente enfrenta, e isso nos machuca.

Nós somos lutadores, sim! Nós, pais de deficientes, somos guerreiros, sim! Mas não precisaríamos ser caso a maioria das outras pessoas soubesse conviver com a diferença, sem achar que pessoas fora do “normal” são inferiores. Sem achar que é um problema ter que aprender a viver com quem usa libras ou qualquer outra forma de comunicação alternativa.

As pessoas se dispõem a prender uma língua estrangeira, mas são incapazes de se dirigir a uma criança que se comunica de forma diferente para falar com ela. Quem tem problemas aqui? É a criança? Ou pessoas que não enxergam a alegria de outro ser humano lindo, justamente por ser diferente.

Ora, diferente todos nós somos. Mas só querem respeitar as igualdades que nos pertencem.

Eu não quero que tenham dó ou piedade do nosso núcleo familiar. Nem que se entristeçam por nós. Desejo sinceramente que cada um siga seu caminho a fim de superar esse luto, pois já passou da hora para muito de nossos parentes e alguns amigos.

Caso contrário, nossa decisão é deixar de fora. Se não agrega, cai fora. É uma decisão dolorosa, pois algumas são pessoas que amamos e que queremos bem.

Mas dói muito mais ter que conviver e ficar ouvindo grosserias ou barganhas do tipo: “Nossa, mas vocês tem sorte que o autismo dele é leve.” Ou: “Quando ele falar, vocês vão ver como tudo vai mudar.” “Agora não adianta mais, teria que ter feito algo antes, por culpa de vocês ele ficará autista para sempre.” “Vou colocar o nome do Leonardo nas orações da minha igreja, Deus curou lepra, câncer e AIDs, vai curar seu filho”. “Toda vez que penso em vocês fico triste.” São exemplos de coisas que já ouvi num curto espaço de tempo, por pessoas diferentes. 

Sim, o Léo tem muita sorte. Por ter muitas pessoas que convivem com ele, que sabem brincar, que sabem falar com ele, mesmo que ele ainda não responda verbalmente. Pessoas que entendem que ele pode não vir a falar nunca, e por isso procuram aprender a se comunicar com ele desde já. Tem gente que não tem só amor. Tem respeito, tem afeto e, sobretudo, tem alegria em vê-lo.

É nisso que temos que nos apegar. Nas pessoas que nos agregam. Pois nossa maternidade e nossa paternidade serão uma militância por nossos filhos. Temos que elaborar nosso luto, as demandas do luto dos outros, e seguir em frente, de cabeça erguida e sem tristeza.

 Não é todo dia que dá pra ser feliz, porque ser feliz é um estado de espírito. Então, vamos conscientizando, aprendendo e nos protegendo.


Assim, quem sabe, a maioria dos dias será feliz. 


sábado, 1 de agosto de 2015

Em busca de tratamento precoce parte II



O ano começa e eu, como professora, tenho que definir meu horário de trabalho, para que a  escola possa organizar o horário das aulas de todos os professores e passar para os alunos. Nesta época fiquei sabendo que o Grupo Gradual faria um Curso sobre ABApara pais de crianças com desenvolvimento atípico, e me vi querendo muito fazer. Desse modo, minha primeira decisão foi deixar o horário do curso livre de trabalho. Mesmo sem saber se poderia pagar, resolvi deixar o horário livre.

Janeiro tem ritmo de férias. Mas estas férias foram regidas pela Senhora Ansiedade. Nem a Gradual nem o CAPS me chamaram para dar continuidade nos processos iniciados em dezembro de 2014. Tive que mandar e-mails e ligar cobrando, o que nunca é legal.

Com o meu esposo sem trabalho decidimos passar o período de festas de fim de ano sem pensar sobre isso. Ninguém contrata durante as festas de fim de ano em sua área de trabalho. Decidimos tirar esse tempo para tentar descansar um pouco, mas assim que janeiro começou ele já disparou currículos. O retorno foi lento e esporádico, mas não desanimamos. Ritmo de férias, pensávamos.

Depois das cobranças, o CAPS nos chamou para dar continuidade nas avaliações do Léo. Felizmente, devido à situação, o Alê pôde ir comigo e me fazer companhia na sala de espera, já que o Léo entrava sozinho com as avaliadoras e outras crianças. A sala de espera era limpa, cheia de brinquedos velhos, uma mesinha e cadeirinhas de criança no centro e cadeiras contornando as paredes.

Na primeira avaliação, fomos apenas eu e o Léo. Quando estávamos saindo de casa, meu carro não ligou, com a bateria descarregada. Não sabia que ônibus pegar para chegar no CAPS, e mesmo que houvesse um ônibus, chegaríamos muito atrasados, então peguei um taxi e chegamos 10 minutos atrasados. Eu liguei para avisar do imprevisto e disseram que não teria problema. Quando chegamos ao CAPS ouvi uma criança gritando. Fui até a sala de espera e encontrei alguns pais sentados, mas eles não souberam informar onde estavam as pessoas que atendiam as crianças. Procurei na recepção, mas estava vazia. Fiquei parada com o Léo no colo, pois se o colocasse no chão ele sairia correndo, explorando o lugar e as coisas. A criança gritava incessantemente. As pessoas na sala de espera em silêncio. De repente uma porta abriu e dela saiu uma senhora. Explico a situação, e ela me levou para um corredor com várias portas fechadas. Bateu numa das portas, que era justamente onde a criança gritava. Abriu apenas uma fresta, e ela rapidamente colocou o Léo para dentro. Aquilo foi assustador. Não pela criança que gritava. Não é isso. Já trabalhei com grupo de crianças em terapia, e não acho que colocar uma criança autista junto com outra desconhecida que está num comportamento disruptivo de gritos e birras seja a melhor maneira de avaliá-la. Fiquei morrendo de dó do Léo por ter que passar por essa situação. Acho que fiquei em estado de choque. Foi tudo tão rápido. E qualquer coisa que eu falasse naquele momento poderia soar como grosseria, uma vez que a criança e sua família estavam ali ao lado, tão fragilizadas quanto eu.

Na sala de espera, tentei me acalmar puxando conversa com as outras pessoas. Perguntei se todos estavam fazendo avaliação, ou se alguém estava esperando o filho na terapia. Todos estavam com seus filhos em processo de avaliação. A mãe da criança que gritava começou a contar sobre seu filho. Disse que ele havia feito terapias nos convênios, mas nada estava adiantando. Falou do isolamento, pois não conseguia mais sair de casa para  passear, nem ir na casa de amigos. Que seu filho estava com 6 anos e que a avó, que antes ficava com ele, agora não conseguia mais por conta da idade. O pai contou sobre a inclusão na escola e os problemas que enfrentavam. Comentou sobre alguns filmes e documentários sobre autismo. Tinham certeza do autismo do filho, mesmo ainda não tendo o diagnóstico fechado. Ninguém ali tinha o diagnóstico, apenas o Léo. E, pelo que os pais me contaram, todos tinham a certeza que o filho era autista, mas que os médicos pareciam ter algum receio em fechar o diagnóstico.

Neste momento compreendi: se dão o diagnóstico, o SUS é obrigado a dar o tratamento adequado. Sem um diagnóstico fechado, ninguém poderia contestar o tal “fazemos o que podemos com que temos”. Saí de lá com uma impressão muito ruim de tudo.

Na segunda avaliação, o Alê foi junto. O que foi ótimo, pois se ele ainda precisava elaborar seu luto de não ter uma criança neurotípica, essa experiência foi intensa. Digo isso pois, nesta sessão, uma fonoaudióloga veio conversar com os pais na sala de espera, e fez algumas perguntas sobre seus filhos. Dentre  as perguntas, uma delas foi a mais contundente: qual era a nossa maior preocupação com relação a nossos filhos? Conforme os pais foram respondendo, o questionamento foi se tornando uma competição para mostrar de quem tinha o filho “mais autista”, comparando histórias de sofrimento. Uma mãe chegou ao ponto de dizer que nós não tínhamos motivos para reclamar, pois seu filho, além de tudo, sofria de convulsões frequentes. Ou seja, ao invés de responderem sobre suas preocupações (como foi perguntado), os pais se limitaram a desfiar reclamações e lamúrias sobre ter um filho autista.

 As sessões seguintes não foram diferentes. Todas com muito drama da vida real de mães que trabalham, cuidam de outros filhos, que precisam lidar com a indiferença, ou até mesmo a violência, de seus maridos, que não entendem os filhos deficientes. Enfim, saíamos de lá muito tristes com o sofrimento destas famílias e, principalmente, destas crianças. E pelo fato de sabermos da existência de um tratamento que eleva muito a qualidade de vida das pessoas autistas, mas que infelizmente muitos psicólogos ainda não aceitam essa abordagem, dificultando a vida de todas essas famílias.  Tratarei deste assunto em outro texto, pois este tema não pode passar sem análises.

Na última sessão, o garotinho que gritava não estava lá. Seus pais conseguiram uma avaliação para ele no Hospital Psiquiátrico Pinel, que tem uma parceria com o AMA. Desejo profundamente que tenham conseguido atendimento por lá, pois tenho informações que realizam um bom trabalho, além de ser gratuito, mas atendem apenas moradores daquela região.

Quando terminaram as sessões de avaliação, tivemos que aguardar a devolutiva até fevereiro de 2015, pois a pessoa que a faria entrou de férias.

Já a devolutiva do Grupo Gradual foi muito interessante. Fizeram um relatório sobre o que observaram, como observaram e o porquê observaram. Apontaram por onde teríamos que começar a trabalhar o desenvolvimento do Léo, com justificativas bem embasadas na analise comportamental. Como não tínhamos condições financeiras para pagar uma Acompanhante Terapêutica, sugeriram que eu fizesse o curso do Grupo de Pais, bem mais em conta. Desta maneira poderíamos entender melhor o que é ABA, e também aprender  alguns procedimentos importantes que aplicaríamos em casa com o Léo. Nesta devolutiva chamaram a atenção para os pré-requisitos que o Léo ainda não havia adquirido, e que precisaria para conseguir se comunicar e interagir melhor com os outros.

Nesta época o Léo estava muito birrento, com crises de choro frequente, e se jogando no chão. As pessoas sempre me diziam: “Relaxa, é só uma fase, meu filho também faz ou fazia isso...”. Eu acabava concordando, pois quem me dizia isso não tem noção do que é uma birra por falta de comunicação ou por desorganização interna de uma criança atípica. Sim, o Léo faz manha como qualquer outra criança, pois ele É uma criança. Mas as birras de crianças autistas nos deixam com muito mais que apenas o constrangimento. Deixa o sentimento de impotência, pois não conseguimos nem ao menos estabelecer um combinado com nossos filhos, do tipo: “Está chovendo agora, não dá pra sair. Quando a chuva passar nós vamos brincar, ok? Vamos assistir um desenho e esperar a chuva passar para sair.” ou “Primeiro  vamos escovar os dentes, depois saímos para brincar”. Coisas simples, que eventualmente, depois da birra, pais de crianças neurotípicas conseguem comunicar e a elas compreenderem.

Nós, pais de autistas, ficamos na frustração pois, durante ou depois da birra, dificilmente conseguimos esse tipo de negociação. Mas acreditem: existem formas de diminuir esses comportamentos, e eu sabia precisava aprendê-los.

Na segunda quinzena de janeiro o Alê começou a ser chamado para entrevistas, e no início de fevereiro ele conseguiu uma nova colocação. Isso nos deu um alívio na ansiedade, pois sabendo qual seria nossa renda poderíamos planejar o pagamento das contas fixas do cotidiano, e também planejar melhor as prioridades de tratamento do Léo.

Diante de tudo o que vimos e pesquisamos, decidimos que manteríamos o Léo na escola particular regular onde já estava frequentando e adaptado. Eu faria o Curso de Pais do Grupo Gradual para ser a Acompanhante Terapêutica do Léo em casa. O Alê iria assistir às aulas à distancia, assim nós dois aplicaríamos os procedimentos terapêuticos. Procuraríamos Terapia Ocupacional e Fono pelo convênio ou pelo SUS. Se quando o Léo completasse seis anos ele ainda não falasse ou ainda apresentasse dificuldades de alfabetização, aí então o levaríamos para uma clinica/escola.

Em fevereiro o CAPS nos deu a devolutiva, mas não souberam nos informar quais as  abordagens que  usariam ou os métodos. Mas nos informaram que não usariam a abordagem comportamental. O Léo faria terapia uma vez na semana, em sessões de 1 hora com outra criança de sua idade, que também chamava Leonardo, e que pretendiam futuramente colocar mais crianças de outro grupo.  Agradeci, mas recusei. Isso é menos do que ele fazia antes do diagnóstico e, como já disse, é direito o diagnóstico precoce e vou lutar para que tenha tratamento precoce adequado. Não quero julgar os profissionais do CAPS, pois sei que existem muitas limitações que não são culpa deles, mas do sistema no qual estão inseridos. Também compreendo os pais que aceitam que seus filhos recebam este tratamento, talvez por ignorância da existência de alternativas mais efetivas. Imagino suas frustrações quando descobrem isso.



Nas minhas resoluções internas, minha prioridade é ajudar meu filho. Mas pretendo me engajar de alguma forma na militância para ajudar esses pais. O blog foi a primeira atitude neste sentido, pois informação e conhecimento são coisas que ninguém pode tirar de nós. E o saber é transformador.
Com todas essas decisões fomos à consulta com a Neuropediatra. Chegando lá, contei para ela tudo o que passamos na busca por uma terapia. Mas ela, com seu jeitinho todo especial, nos chamou a atenção para a questão séria da neuroplasticidade do cérebro. E que era para buscarmos o quanto antes ajuda da escola/clinica, pois ele precisava ter os pré-requistos desenvolvidos, e que este era o ambiente onde dariam ao Léo a oportunidade de estabelecer a ponte entre seu mundo autista e nós. Ela nos deu o modelo de uma solicitação de um paciente que fez um pedido à Secretária da Saúde para conseguir um tratamento custeado pelo governo, pois é responsabilidade do Estado fornecê-lo, e um direito do Léo em recebe-lo. Ela também nos disse que isso era bem difícil, mas com a regulamentação da Lei Berenice Piana em dezembro de 2014, esta era a hora de nós pais exigirmos nossos direitos.
Nem precisa falar que, assim que saímos da consulta, já mudamos os nossos planos.

Dia seguinte agendamos para ir à clinica/escola que usa o método Teacch, que relatei no texto Em busca de tratamento precoce. O Alê foi junto desta vez. E, para minha surpresa, estavam terminando uma reforma, onde colocaram mais cores na decoração. Ainda tinha a cara de uma clinica/escola, mas estava mais acolhedora. Compreendo que a aplicação do ABA para crianças autistas pressupões uma diminuição dos estímulos de cores e barulhos. Aliás, isso é um problema para grande parte dos autistas quando frequentam escola regular como inclusão. Qualquer ruído, movimento ou brilho podem distrair a criança autista e dificultar sua concentração para um aprendizado específico que se pretende fazer. Nós vimos as crianças lendo, fazendo suas atividades, e elas estavam felizes. E uma coisa que ficou muito nítida foi a seriedade dos profissionais e o amor pelo que fazem.



Mas, para matricular o Léo nesta escola, teríamos que gastar o dobro do que pagamos na escolinha particular. O lado bom é que ele teria várias terapias em um único lugar, receberia um olhar multidisciplinar, e teria um dialogo dos profissionais sobre suas questões. Para conseguirmos isso, apertamos o orçamento e colocamos o Léo numa escola da prefeitura. Ficamos muito inseguros quanto a isso. Mas era o que tinha que ser feito. Era esse o caminho.
Foi muito dolorido tirá-lo da escolinha particular. Marcamos para conversar com a diretora, pois já havíamos pagado a matrícula de 2015. E, ao explicar os motivos, chorei. Não foi um choro pelo autismo. Mas é injusto passarmos por tudo isso, devido à carência de locais que façam tratamentos adequados para nossos filhos. O Léo adorava aquela escolinha.



Mas as lágrimas secaram rápido, não há tempo para lamentos. É o que temos para hoje. Muitas crianças estudam em EMEIs e meu filho não é superior nem inferior a ninguém, é apenas diferente, e vou ensinar isso para ele. É a vida ensinando isso para nós. E quanto mais rápido aprendermos a lição, mais tempo teremos para sermos felizes.



Uma amiga nos indicou sua cunhada, que é fonoaudióloga e que fez Mestrado na USP na área de autismo. Conversamos muito, uma pessoa maravilhosa que hoje faz parte da nossa história e nos indicou para a clínica da USP, que estava fazendo inscrição para pessoas da região. Levei documentos, comprovante de residência, fizemos uma entrevista com a coordenadora da pós-graduação, e poderíamos começar após a 2ª quinzena de março.

Matriculamos o Léo na clinica/escola no período da manhã e na EMEI no período da tarde. Faríamos o curso de pais sobre ABA na Gradual uma vez por semana. Fono na USP. Tudo acertado.

Força de trabalho é o que não falta neste meu sangue. Bora trabalhar.

Que comece o ano. Os dados estão na mesa.