“Seu olhar lá fora
O seu olhar no céu
O seu olhar demora
O seu olhar no meu
O seu olhar seu olhar melhora
Melhora o meu.”
(Arnaldo Antunes/ Paulo Tatit – O Seu Olhar)
Quem é mãe de um autista sabe muito bem o quanto significa
um olhar.
Durante a gestação do Léo, gravamos um CD com algumas
músicas que simbolizavam o nosso relacionamento (meu e do Ale), a expectativa
da chegada do Léo e a idealização de um futuro lindo para ele. O CD foi dado a
todos que visitaram o Léo nos primeiros meses, bem como aos médicos e alguns
funcionários do Hospital Universitário, onde ele nasceu.
Essa música do Arnaldo Antunes está no CD, e também era uma
das que eu gostava de cantar para ele enquanto o embalava no colo para dormir,
ou quando ele chorava incomodado por alguma cólica. Eu adorava cantar para ele,
e ele me retribuía com seu olhar. Mas com o passar do tempo esse olhar foi
ficando cada vez mais distante. Essa era uma das coisas que nos deixava
cabreiros sobre a possibilidade de haver algo errado com nosso bebê.
Como disse no último texto, quando a neuropediatra nos pediu
para levar os relatórios das terapeutas do Léo para tentar fechar um
diagnóstico na próxima consulta, isso me deixou ligada em tudo o que era
pesquisa sobre autismo. Retomei os estudos, li livros, consultei pessoas que
trabalham nesta área. E, nestas buscas, um colega que me ouviu comentar sobre
as minhas angústias com a expectativa do diagnóstico autista, e que também
estava cortando a lactose de sua dieta, pois o intestino do Léo era completamente
desregulado. Esse colega veio me procurar e me contou sobre a dieta sem glúten
e sem caseína que seu filho fazia. Disse-me que desde que havia começado ele tinha
melhorado muito.
Em casa contei a história para o Ale, e ele se lembrou de
que seu pai havia indicado um documentário sobre a relação do autismo com
alguma questão intestinal. Na mesma noite procuramos o documentário e assistimos.
O documentário chama-se O enigma do autismo. Recomendo muito que assistam.
O documentário foi produzido pela BBC, e mostra recentes
descobertas de centros de pesquisas que demonstram que, além das
características mais marcantes relacionadas ao TEA, principalmente ao falho
desenvolvimento da linguagem e interação social, ainda há uma série de
desordens gastrointestinais que acometem os autistas, como infecções da parede
intestinal e inflamações que alteram a permeabilidade intestinal. Estes fatores
agravam ainda mais os sintomas clássicos, pois determinadas bactérias atravessam
a parede do intestino, entrando na corrente sanguínea, e através dela chegam ao
cérebro, atrapalhando ainda mais questões do desenvolvimento da linguagem.
Uma coisa é importante dizer: estes estudos não dizem em
momento algum que isso seja a causa do autismo, ou que há um tratamento de
cura. Mas mostra que regular uma dieta, retirando principalmente o glúten e a caseína, pode ajudar num melhor desenvolvimento das pessoas
autistas. As pesquisas continuam sendo feitas, pois ainda não é um caso
universalizado para a Ciência. Mas como nossa experiência de cortar a lactose
não tinha sido tão eficiente (a quantidade de vezes que o Léo fazia fezes tinha
diminuído de 6 para 3 vezes por dia, mas a consistência das fezes continuava
alterada), resolvemos, por conta da nossa responsabilidade de pais, experimentar
a dieta durante um mês, de modo a observar como o organismo dele reagiria.
Foi uma das melhores coisas que fizemos. Em aproximadamente
duas semanas começamos a observar uma melhora inquestionável do seu intestino. E
também uma melhora no “olhar” do Léo. Ainda ficamos com um pé atrás em
relacionar essa melhora com a dieta, pois tudo o que estudamos sobre o assunto
nos dizia que os resultados demorariam a surgir. Não podíamos descartar uma
coincidência em seu desenvolvimento, nem
o resultado dos esforços nas terapias. Assim decidimos não nos precipitar com
essa nossa observação, pois poderia ser nossa ansiedade falando mais alto. Mas
era inegável que ele não estava mais tão ausente.
Neste primeiro mês de dieta também assistimos a um documentário
sobre o método SON RISE. Nossa
primeira impressão foi de desconfiança, pois neste documentário eles tratam o
método repetidas vezes como uma “cura” para o autismo, e sabemos muito bem que isso
ainda não existe. De comprovado mesmo existem apenas os tratamentos e terapias,
que melhoram o desenvolvimento e qualidade de vida das pessoas com TEA. Muitos
dos resultados do método Son Rise estão sendo contestados, e faltam
comprovações científicas de suas alegações.
No entanto, uma parte do método é bem simples e possível de
se fazer em casa. O método propõe uma brincadeira de imitação, onde imitamos
tudo que a criança faz, especialmente os movimentos repetitivos (estereotipias).
Após um tempo imitando-o, ele começaria a nos notar, e a tendência é que nos olhasse.
E sempre que ele o fizesse, deveríamos elogiar o contato visual. Fizemos a
experiência com o Léo, e funcionou. De novo, não era possível responsabilizar
apenas o exercício simples proposto pelo método, mas foi possível comprovar a
melhora da atenção do Léo e, sobretudo, seu olhar.
A dieta, em conjunto com essas brincadeiras, tiraram nosso
pequeno Léo daquele lugar distante de nós. Foi uma das maiores emoções da minha
vida ter novamente a atenção do olhar do Léo para nós. E foi uma delícia, pois uma
das brincadeiras preferidas do Léo naquela época era pular em cima da cama. E
adivinha? Pulávamos junto com ele. Jogava-me feito criança na cama. Rodava de
braços abertos até cair tonta no chão da sala. E, para meu deleite, ele em
seguida pulava em cima de mim, me olhando e rindo. As brincadeiras eram apenas
essas, mas foram o suficiente para nos conectar novamente.
Abandonamos o método Son Rise nesta etapa, pois ele é
demasiadamente caro e não foi algo que nos convenceu como um tratamento
possível. Muitas promessas e poucas respostas às nossas dúvidas. Já a dieta SGSC nós mantivemos. A neuropediatra e a pediatra
que o acompanham autorizaram a continuidade quando relatamos a melhora.
Um livro que não sai da minha cozinha é Autismo: esperança pela nutrição de Claudia Marcelino. Esse
livro tem tanto a parte teórica sobre alimentos e ingredientes e seus efeitos, quanto
receitas sem glúten e sem caseína. Algumas o Léo gosta mais que outras. Então,
quando ele experimenta uma e gosta, eu transcrevo a receita para um caderninho
que chamei de “Receitas para um anjo
Azul”.
Seguir essa dieta não é fácil. Alguns produtos são mais
caros e difíceis de encontrar. Por sorte cortar o glúten está na moda (na
maioria das vezes pelos motivos errados), e conseguimos encontrar mais opções
de alimentos livre de glúten no mercado. Mas a dieta não é tão difícil quanto
parece. Houve algumas adaptações à nossa rotina, claro. Sempre que saímos de
casa precisamos pensar no que vai ter para comer no local, e levamos a
marmitinha SGSC do Léo com tudo o que pudermos substituir. Também abusamos das
frutas. Sempre temos uma fruta por perto.
Minha querida mamãe tem sido uma superamiga e super vovó.
Prepara várias receitas para o Léo. Quando vamos para alguma festinha, ela
prepara um rocambole de fécula de batata maravilhoso, que damos para o Léo
quando cortam o bolo de aniversário.
É claro que às vezes escapa uma coisa ou outra. Frequentemente
nos deparamos com alguém que oferece algo diretamente para o Léo, e nem sempre
dá tempo de evitar. Fomos num casamento certa vez, e assim que colocamos o pé
no salão de festa um garçom abaixou sua bandeja com um festival de glúten e
disse “Pega um, garotinho!”. Antes que conseguíssemos evitar o Leo já estava
com a boca cheia de salgadinhos. Resultado: no dia seguinte ele estava com as
fezes novamente amolecidas e em quantidades extraordinárias para uma criança.
Além disso, retornou seu olhar ausente, e muita irritação.
Tomei nota do comportamento do Léo com glúten, e retomamos a
dieta. Alguns dias depois observamos a melhora. Demorou bastante para ele ingerir
glúten novamente, mas quando aconteceu os resultados foram bastante semelhantes
(alteração na consistência das fezes e olhar perdido, intercalado com longos
silêncios). Tomei nota tanto das reações orgânicas quanto das comportamentais.
Algumas pessoas, incluindo alguns profissionais da área do
autismo, não estimulam a dieta, ou até mesmo a desacreditam. Uma das terapeutas,
que atendeu o Léo no período do diagnóstico, me recomendou que eu não fizesse a
dieta, pois ela havia assistido a uma palestra de um médico que havia dito que
era um mito.
É muita gente sabida por aí!
Meu objetivo aqui não é convencer ninguém a fazer a dieta. Sei
de autistas que não a fizeram e se desenvolveram muito bem. Meu objetivo aqui é
contar nosso percurso, que não é melhor nem pior que os de outros, mas essa é a
nossa experiência com o Leonardo. E, por enquanto, vimos bons resultados.
Não paramos na dieta. Além de estudarmos sobre a relação da
alimentação e o autismo, também passamos a buscar linhas de tratamentos para o
Léo. Essa é uma etapa angustiante, pois depois que você recebe o laudo com o
CID de TEA vem outra etapa árdua: ajudar seu filho a ser uma pessoa
independente e feliz.
Seria fácil se o problema fosse só o autismo. Mas a
dificuldade maior de ter um filho autista não é o autismo, é a sociedade despreparada
e sem vontade de ajudar. É o descaso governamental, os preconceitos, e toda
essa dificuldade de saber aceitar que as diferenças existem e temos que
conviver com elas, não simplesmente segregar.
Mas isso será tema de outros textos, pois muita água tem
rolado debaixo desta ponte.
Por ora, vamos nos ater as coisas boas! Como diz o poeta
Arnaldo Antunes:
"O seu olhar agora
o seu olhar nasceu
o seu olhar me olha
o seu olhar
seu olhar melhora
melhora o meu."
Seu olhar, meu filho, rege a força que está dentro de mim.