O ano começa e eu, como professora, tenho que definir meu
horário de trabalho, para que a escola possa
organizar o horário das aulas de todos os professores e passar para os alunos.
Nesta época fiquei sabendo que o Grupo Gradual faria um Curso sobre ABApara pais de crianças com desenvolvimento atípico, e me vi querendo muito
fazer. Desse modo, minha primeira decisão foi deixar o horário do curso livre de
trabalho. Mesmo sem saber se poderia pagar, resolvi deixar o horário livre.
Janeiro tem ritmo de férias. Mas estas férias foram regidas
pela Senhora Ansiedade. Nem a Gradual nem o CAPS me chamaram para dar
continuidade nos processos iniciados em dezembro de 2014. Tive que mandar e-mails
e ligar cobrando, o que nunca é legal.
Com o meu esposo sem trabalho decidimos passar o período de
festas de fim de ano sem pensar sobre isso. Ninguém contrata durante as festas
de fim de ano em sua área de trabalho. Decidimos tirar esse tempo para tentar
descansar um pouco, mas assim que janeiro começou ele já disparou currículos. O
retorno foi lento e esporádico, mas não desanimamos. Ritmo de férias,
pensávamos.
Depois das cobranças, o CAPS nos chamou para dar
continuidade nas avaliações do Léo. Felizmente, devido à situação, o Alê pôde
ir comigo e me fazer companhia na sala de espera, já que o Léo entrava sozinho
com as avaliadoras e outras crianças. A sala de espera era limpa, cheia de
brinquedos velhos, uma mesinha e cadeirinhas de criança no centro e cadeiras
contornando as paredes.
Na primeira avaliação, fomos apenas eu e o Léo. Quando estávamos
saindo de casa, meu carro não ligou, com a bateria descarregada. Não sabia que
ônibus pegar para chegar no CAPS, e mesmo que houvesse um ônibus, chegaríamos
muito atrasados, então peguei um taxi e chegamos 10 minutos atrasados. Eu
liguei para avisar do imprevisto e disseram que não teria problema. Quando
chegamos ao CAPS ouvi uma criança gritando. Fui até a sala de espera e
encontrei alguns pais sentados, mas eles não souberam informar onde estavam as
pessoas que atendiam as crianças. Procurei na recepção, mas estava vazia.
Fiquei parada com o Léo no colo, pois se o colocasse no chão ele sairia
correndo, explorando o lugar e as coisas. A criança gritava incessantemente. As
pessoas na sala de espera em silêncio. De repente uma porta abriu e dela saiu
uma senhora. Explico a situação, e ela me levou para um corredor com várias
portas fechadas. Bateu numa das portas, que era justamente onde a criança
gritava. Abriu apenas uma fresta, e ela rapidamente colocou o Léo para dentro.
Aquilo foi assustador. Não pela criança que gritava. Não é isso. Já trabalhei
com grupo de crianças em terapia, e não acho que colocar uma criança autista
junto com outra desconhecida que está num comportamento disruptivo de gritos e
birras seja a melhor maneira de avaliá-la. Fiquei morrendo de dó do Léo por ter
que passar por essa situação. Acho que fiquei em estado de choque. Foi tudo tão
rápido. E qualquer coisa que eu falasse naquele momento poderia soar como
grosseria, uma vez que a criança e sua família estavam ali ao lado, tão
fragilizadas quanto eu.
Na sala de espera, tentei me acalmar puxando conversa com as
outras pessoas. Perguntei se todos estavam fazendo avaliação, ou se alguém
estava esperando o filho na terapia. Todos estavam com seus filhos em processo
de avaliação. A mãe da criança que gritava começou a contar sobre seu filho.
Disse que ele havia feito terapias nos convênios, mas nada estava adiantando.
Falou do isolamento, pois não conseguia mais sair de casa para passear, nem ir na casa de amigos. Que seu
filho estava com 6 anos e que a avó, que antes ficava com ele, agora não
conseguia mais por conta da idade. O pai contou sobre a inclusão na escola e os
problemas que enfrentavam. Comentou sobre alguns filmes e documentários sobre
autismo. Tinham certeza do autismo do filho, mesmo ainda não tendo o
diagnóstico fechado. Ninguém ali tinha o diagnóstico, apenas o Léo. E, pelo que
os pais me contaram, todos tinham a certeza que o filho era autista, mas que os
médicos pareciam ter algum receio em fechar o diagnóstico.
Neste momento compreendi: se dão o diagnóstico, o SUS é
obrigado a dar o tratamento adequado. Sem um diagnóstico fechado, ninguém poderia
contestar o tal “fazemos o que podemos com que temos”. Saí de lá com uma
impressão muito ruim de tudo.
Na segunda avaliação, o Alê foi junto. O que foi ótimo, pois
se ele ainda precisava elaborar seu luto de não ter uma criança neurotípica, essa
experiência foi intensa. Digo isso pois, nesta sessão, uma fonoaudióloga veio
conversar com os pais na sala de espera, e fez algumas perguntas sobre seus
filhos. Dentre as perguntas, uma delas
foi a mais contundente: qual era a nossa maior preocupação com relação a nossos
filhos? Conforme os pais foram respondendo, o questionamento foi se tornando
uma competição para mostrar de quem tinha o filho “mais autista”, comparando
histórias de sofrimento. Uma mãe chegou ao ponto de dizer que nós não tínhamos
motivos para reclamar, pois seu filho, além de tudo, sofria de convulsões
frequentes. Ou seja, ao invés de responderem sobre suas preocupações (como foi
perguntado), os pais se limitaram a desfiar reclamações e lamúrias sobre ter um
filho autista.
As sessões seguintes
não foram diferentes. Todas com muito drama da vida real de mães que trabalham,
cuidam de outros filhos, que precisam lidar com a indiferença, ou até mesmo a violência,
de seus maridos, que não entendem os filhos deficientes. Enfim, saíamos de lá
muito tristes com o sofrimento destas famílias e, principalmente, destas
crianças. E pelo fato de sabermos da existência de um tratamento que eleva muito
a qualidade de vida das pessoas autistas, mas que infelizmente muitos psicólogos
ainda não aceitam essa abordagem, dificultando a vida de todas essas
famílias. Tratarei deste assunto em
outro texto, pois este tema não pode passar sem análises.
Na última sessão, o garotinho que gritava não estava lá.
Seus pais conseguiram uma avaliação para ele no Hospital Psiquiátrico Pinel,
que tem uma parceria com o AMA. Desejo profundamente que tenham conseguido
atendimento por lá, pois tenho informações que realizam um bom trabalho, além
de ser gratuito, mas atendem apenas moradores daquela região.
Quando terminaram as sessões de avaliação, tivemos que
aguardar a devolutiva até fevereiro de 2015, pois a pessoa que a faria entrou
de férias.
Já a devolutiva do Grupo Gradual foi muito interessante. Fizeram
um relatório sobre o que observaram, como observaram e o porquê observaram.
Apontaram por onde teríamos que começar a trabalhar o desenvolvimento do Léo,
com justificativas bem embasadas na analise comportamental. Como não tínhamos
condições financeiras para pagar uma Acompanhante Terapêutica, sugeriram que eu
fizesse o curso do Grupo de Pais, bem mais em conta. Desta maneira poderíamos
entender melhor o que é ABA, e também aprender
alguns procedimentos importantes que aplicaríamos em casa com o Léo.
Nesta devolutiva chamaram a atenção para os pré-requisitos que o Léo ainda não
havia adquirido, e que precisaria para conseguir se comunicar e interagir
melhor com os outros.
Nesta época o Léo estava muito birrento, com crises de choro
frequente, e se jogando no chão. As pessoas sempre me diziam: “Relaxa, é só uma
fase, meu filho também faz ou fazia isso...”. Eu acabava concordando, pois quem
me dizia isso não tem noção do que é uma birra por falta de comunicação ou por
desorganização interna de uma criança atípica. Sim, o Léo faz manha como
qualquer outra criança, pois ele É uma criança. Mas as birras de crianças
autistas nos deixam com muito mais que apenas o constrangimento. Deixa o
sentimento de impotência, pois não conseguimos nem ao menos estabelecer um
combinado com nossos filhos, do tipo: “Está chovendo agora, não dá pra sair.
Quando a chuva passar nós vamos brincar, ok? Vamos assistir um desenho e
esperar a chuva passar para sair.” ou “Primeiro
vamos escovar os dentes, depois saímos para brincar”. Coisas simples,
que eventualmente, depois da birra, pais de crianças neurotípicas conseguem comunicar
e a elas compreenderem.
Nós, pais de autistas, ficamos na frustração pois, durante
ou depois da birra, dificilmente conseguimos esse tipo de negociação. Mas
acreditem: existem formas de diminuir esses comportamentos, e eu sabia
precisava aprendê-los.
Na segunda quinzena de janeiro o Alê começou a ser chamado
para entrevistas, e no início de fevereiro ele conseguiu uma nova colocação.
Isso nos deu um alívio na ansiedade, pois sabendo qual seria nossa renda poderíamos
planejar o pagamento das contas fixas do cotidiano, e também planejar melhor as
prioridades de tratamento do Léo.
Diante de tudo o que vimos e pesquisamos, decidimos que
manteríamos o Léo na escola particular regular onde já estava frequentando e
adaptado. Eu faria o Curso de Pais do Grupo Gradual para ser a Acompanhante
Terapêutica do Léo em casa. O Alê iria assistir às aulas à distancia, assim nós
dois aplicaríamos os procedimentos terapêuticos. Procuraríamos Terapia
Ocupacional e Fono pelo convênio ou pelo SUS. Se quando o Léo completasse seis
anos ele ainda não falasse ou ainda apresentasse dificuldades de alfabetização,
aí então o levaríamos para uma clinica/escola.
Em fevereiro o CAPS nos deu a devolutiva, mas não souberam nos
informar quais as abordagens que usariam ou os métodos. Mas nos informaram que
não usariam a abordagem comportamental. O Léo faria terapia uma vez na semana, em
sessões de 1 hora com outra criança de sua idade, que também chamava Leonardo,
e que pretendiam futuramente colocar mais crianças de outro grupo. Agradeci, mas recusei. Isso é menos do que
ele fazia antes do diagnóstico e, como já disse, é direito o diagnóstico
precoce e vou lutar para que tenha tratamento precoce adequado. Não quero
julgar os profissionais do CAPS, pois sei que existem muitas limitações que não
são culpa deles, mas do sistema no qual estão inseridos. Também compreendo os
pais que aceitam que seus filhos recebam este tratamento, talvez por ignorância
da existência de alternativas mais efetivas. Imagino suas frustrações quando
descobrem isso.
Nas minhas resoluções internas, minha prioridade é ajudar
meu filho. Mas pretendo me engajar de alguma forma na militância para ajudar
esses pais. O blog foi a primeira atitude neste sentido, pois informação e
conhecimento são coisas que ninguém pode tirar de nós. E o saber é
transformador.
Com todas essas decisões fomos à consulta com a
Neuropediatra. Chegando lá, contei para ela tudo o que passamos na busca por
uma terapia. Mas ela, com seu jeitinho todo especial, nos chamou a atenção para
a questão séria da neuroplasticidade do cérebro. E que era para buscarmos o
quanto antes ajuda da escola/clinica, pois ele precisava ter os pré-requistos
desenvolvidos, e que este era o ambiente onde dariam ao Léo a oportunidade de
estabelecer a ponte entre seu mundo autista e nós. Ela nos deu o modelo de uma
solicitação de um paciente que fez um pedido à Secretária da Saúde para
conseguir um tratamento custeado pelo governo, pois é responsabilidade do
Estado fornecê-lo, e um direito do Léo em recebe-lo. Ela também nos disse que
isso era bem difícil, mas com a regulamentação da Lei Berenice Piana em
dezembro de 2014, esta era a hora de nós pais exigirmos nossos direitos.
Nem precisa falar que, assim que saímos da consulta, já
mudamos os nossos planos.
Dia seguinte agendamos para ir à clinica/escola que usa o
método Teacch, que relatei no texto Em busca de tratamento precoce. O
Alê foi junto desta vez. E, para minha surpresa, estavam terminando uma
reforma, onde colocaram mais cores na decoração. Ainda tinha a cara de uma
clinica/escola, mas estava mais acolhedora. Compreendo que a aplicação do ABA para
crianças autistas pressupões uma diminuição dos estímulos de cores e barulhos. Aliás,
isso é um problema para grande parte dos autistas quando frequentam escola
regular como inclusão. Qualquer ruído, movimento ou brilho podem distrair a
criança autista e dificultar sua concentração para um aprendizado específico
que se pretende fazer. Nós vimos as crianças lendo, fazendo suas atividades, e elas
estavam felizes. E uma coisa que ficou muito nítida foi a seriedade dos
profissionais e o amor pelo que fazem.
Mas, para matricular o Léo nesta escola, teríamos que gastar
o dobro do que pagamos na escolinha particular. O lado bom é que ele teria várias
terapias em um único lugar, receberia um olhar multidisciplinar, e teria um
dialogo dos profissionais sobre suas questões. Para conseguirmos isso,
apertamos o orçamento e colocamos o Léo numa escola da prefeitura. Ficamos
muito inseguros quanto a isso. Mas era o que tinha que ser feito. Era esse o
caminho.
Foi muito dolorido tirá-lo da escolinha particular. Marcamos
para conversar com a diretora, pois já havíamos pagado a matrícula de 2015. E,
ao explicar os motivos, chorei. Não foi um choro pelo autismo. Mas é injusto
passarmos por tudo isso, devido à carência de locais que façam tratamentos
adequados para nossos filhos. O Léo adorava aquela escolinha.
Mas as lágrimas secaram rápido, não há tempo para lamentos.
É o que temos para hoje. Muitas crianças estudam em EMEIs e meu filho não é superior
nem inferior a ninguém, é apenas diferente, e vou ensinar isso para ele. É a
vida ensinando isso para nós. E quanto mais rápido aprendermos a lição, mais
tempo teremos para sermos felizes.
Uma amiga nos indicou sua cunhada, que é fonoaudióloga e que
fez Mestrado na USP na área de autismo. Conversamos muito, uma pessoa
maravilhosa que hoje faz parte da nossa história e nos indicou para a clínica
da USP, que estava fazendo inscrição para pessoas da região. Levei documentos,
comprovante de residência, fizemos uma entrevista com a coordenadora da pós-graduação,
e poderíamos começar após a 2ª quinzena de março.
Matriculamos o Léo na clinica/escola no período da manhã e
na EMEI no período da tarde. Faríamos o curso de pais sobre ABA na Gradual uma
vez por semana. Fono na USP. Tudo acertado.
Força de trabalho é o que não falta neste meu sangue. Bora trabalhar.
Que comece o ano. Os dados estão na mesa.
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