A festa de aniversário de um ano é mais uma tradição e um
evento social para os pais celebrarem com parentes e amigos do que para a
criança, já que ela não tem muita compreensão do que está acontecendo à sua
volta. Os convidados são pessoas próximas, e outras às quais queremos
apresentar nosso filho amado e lindo para a sociedade.
Já no segundo aniversário as crianças estão mais espertas, e
o mundo do consumo já absorveu essa esperteza, oferecendo aos pais decorações
de todos os desenhos e personagens que as crianças gostam. Há uma falsa ideia
de que a criança está escolhendo o tema de seu aniversário, enquanto, na
verdade, o mundo sedutor do consumismo já fez isso antes, apenas induzindo ou
manipulando a verdadeira opção de escolha da criança.
Tudo bem a criança escolher como vai querer alguns detalhes
de sua festa, como os sabores dos doces, a cobertura do bolo e até mesmo alguns
enfeites, mas o tema central não deveria ser o Peixonauta, a Peppa ou a Galinha
Pintadinha, e sim a bela criança em sua plena infância. Essa indústria do
consumo nos convence que a criança escolhe, enquanto na verdade, aniquila
potenciais de criatividade. E essa crítica não é para você que lê esse texto, é
para mim. O aniversário do Léo de 2 anos teve como tema o Peixonauta.
Nesta mesma ideia de ter que escolher tema para a festa,
pensamos, no 1º aniversário do Léo, o quanto seria difícil escapar dos tão
famosos “temas”. Então, como ele ainda não tinha a capacidade para escolher,
fizemos uma festa tendo nosso estimado Saci como tema. Por quê? Porque eu adoro
Sacis, e meu saudoso avô Adelino me contou certa vez que viu um, e acreditava
piamente nisso. É o suficiente para o Saci fazer parte da minha história. Nós
mesmos fizemos os enfeites, contando com ajuda de alguns familiares. Convidamos
bastantes amigos.
Nessa época o Léo ainda não andava, e não tinha nenhum dentinho.
Era um bebezão lindo. Adorou a hora do parabéns. Foi no colo de todos convidados,
tiramos muitas fotos. Ele estava muito alegre neste dia.
Já no aniversário de 2 anos, tínhamos acabado de mudar de
casa, o orçamento estava mais apertado, e já estávamos com a pulga atrás da
orelha a respeito do comportamento atípico do Léo. Diante da correria com a
mudança, foi muito mais prático ceder às regalias dos buffets e seus temas de
aniversário. Escolhemos o Peixonauta, pois era um desenho que o Léo adorava. Fizemos
a festa no salão de festas da casa de meus pais, como no primeiro ano.
Neste aniversário o Léo só correu. Não deu a mínima para os
convidados. Tínhamos que “laçá-lo” e carregá-lo no colo para conseguir tirar
uma foto ou mesmo oferecer um copo d’água. Enfim, ele estava super agitado. Na
hora de cantar parabéns, não demonstrou a empolgação do ano anterior. Ficou
apenas olhando para as pessoas, tentando compreender o porquê daquela cantoria.
Este aniversário de dois anos foi muito estranho, pois
deixamos tudo nas mãos de um buffet, e acabamos não curtindo como no ano
anterior, onde que ficamos alguns meses antes preparando as coisas, produzindo
enfeites, lembrancinhas...
Após a festa de 2 anos, mais especificamente no dia seguinte,
a coordenadora da escola que o Léo tinha começado a frequentar a pouco menos de
2 meses nos chamou para dizer que ele tinha caraterísticas de autista, e que era
para investigarmos, como já contei nos textos A queda e Sem Chão.
Não deu tempo nem de curtir esse aniversário. O 2º aninho do Léo foi intenso,
onde passamos por tudo que já narrei em textos aqui do blog, além de coisas que
não convém narrar.
(foto do parabéns de 2 anos)
Quando ele estava prestes a completar 3 anos, estávamos
quase certos de seu autismo, mas ainda nos agarrávamos em fios cada vez mais
tênues de esperança, que o diagnóstico iria em breve dissipar.
Devido a isso, no 3º aniversário novamente escolhemos um
tema comercial para a festa. Dessa vez foi a inescapável Peppa. Mas decidimos
não contratar um buffet que trouxesse a decoração. Compramos um “kit festa”
padrão mesmo. Convidamos novamente todos os familiares, mesmo aqueles com os
quais não temos muita convivência, colegas de trabalho e a turma toda de amigos
mais próximos. Lotamos o salão do prédio.
Olhando hoje, mais distanciada daquele momento, percebo que
algo dentro de mim já pressentia que aquele seria o último aniversário
planejado como uma mãe de criança neurotípica. Foi um desejo meu ter todos por
perto, como se meu Leonardo estivesse fazendo seu 1º aniversário. Algo que fazia me apegar a uma última esperança, de que
meu filho não era autista, que ele iria falar logo, e que todos em breve esqueceriam
aquela fase. Dói um pouco assumir isso, pois hoje amo-o exatamente como é, aceito
sua condição de autista, e apenas quero que ele possa aprender a desenvolver todo
seu potencial, como qualquer mãe com qualquer filho. Acima de tudo, luto para que
respeitem sua diferença.
Nós sempre passeamos bastante com o Léo. Antes mesmo de
completar 3 anos ele já tinha ido em diversos shows, peças de teatro, festas e exposições
como a do Cândido Portinari e do Stanley Kubrick, lugares bastante cheios e
movimentados. Sempre fizemos questão de colocá-lo ele em contato com diversos
mundos, e tivesse acesso a diferentes expressões culturais.
Mas a festa de 3 anos nos revelou algo muito comum em
crianças dentro do espectro autista: não saber lidar com os olhares e atenção
dos outros sobre eles. O autismo dele estava lá, para quem quisesse ou pudesse
ver, independentemente de qualquer diagnóstico.
Era uma noite fria de final de inverno, e por esse motivo tivemos
que ficar dentro do salão de festas. O salão do prédio se divide em dois
ambientes, e os dois estavam tomados por ruídos típicos de uma festa infantil,
das vozes e risadas dos convidados. Em um ambiente estava tocando música, e no
outro a TV passando clipes da Palavra Cantada. Diferente de outros lugares que
o levamos anteriormente, daquela vez todos queriam sua atenção, cumprimentar,
tirar foto, pegar no colo, enfim. Ele era o tema, e não a Peppa.
Mas para ele aquela atenção toda estava beirando o
insuportável. Não aguentava ficar dentro do salão. Durante grande parte da
festa meu pai ficou com ele na área comum do condomínio. Iam para o playground,
onde só havia crianças e menos ruído. Mas, como estava frio, tivemos que
trazê-lo para dentro e fechar a porta para que ele não saísse mais do salão. Foi
uma péssima ideia, confesso, mas no momento pareceu correta.
Tentamos fazer ele se acalmar, mas o pandemônio da festa não
tornava essa tarefa fácil. De repente minha mãe me perguntou: “Cadê o Léo?”, e
eu, que havia desgrudado os olhos dele por apenas um minuto, não soube
responder. A porta ainda estava fechada, então ele tinha que estar no salão. Corri
os olhos rapidamente por todos os cantos, e nada. Fui até o banheiro feminino e
não o encontrei.
Quando estava prestes a entrar em pânico o encontramos no chão
do banheiro masculino, deitado de bruços embaixo do armário da pia, escondendo-se
do barulho da festa. Aquilo partiu meu coração.
Levei ele até o salão e coloquei-o para assistir alguns clipes
da Palavra Cantada, o que ele fez por bastante tempo, sem dar mais nenhuma
atenção a nada nem ninguém à sua volta, e isso o acalmou. Percebi que isso
incomodou algumas pessoas, que chegaram a sugerir que eu desligasse a TV, assim
quem sabe ele deixaria de ignorar a festa, pois era como se a TV o
hipnotizasse. Mas, na verdade, a TV foi a fuga para um lugar mais confortável
dentro dele. Tanto que, quando o tiramos da frente da TV para cantar parabéns,
ele se enroscou no pescoço do pai, e depois no meu pescoço, se recusando a olhar
para as pessoas em volta da mesa. Também não quis soprar as velinhas. Temos
apenas uma foto para o álbum em que, por sorte, o fotografaram de frente para a
mesa do bolo. Nas outras fotos ele está grudado no nosso colo, sem querer ver o
parabéns.
Com exceção da minha mãe e do Ale, ninguém nunca comentou ou
conversou comigo sobre este dia. Principalmente sobre esse momento. Não sei
exatamente o que as pessoas viram ou acharam. Mas ali meu coração ficou em
caquinhos.
E, naquele momento, com todo respeito do mundo ao meu filho,
prometi que nas próximas festas faria as coisas para ele, e apenas para ele. Seu
aniversário seria seu aniversário e, não mais um evento social. Quando chegou a
época de planejarmos a festinha para comemorar os seus 4 anos, nosso mundo já
era outro. Já tínhamos o diagnóstico. Enfrentamos tantas lutas até aquele
momento, e sabíamos que muitas outras ainda estavam por vir. Mas isso não
poderia nos impedir de comemorarmos seu aniversário, e que o Léo se divertisse
com isso.
A primeira decisão foi que a festa teria apenas os
convidados que o Léo tem mais convivência. Essa foi uma decisão difícil, pois diversas
pessoas por quem temos um imenso carinho ficariam de fora, e não gostaríamos de
magoar ninguém. Mas o Leonardo é prioridade. Sua festa de aniversário teria que
começar a fazer sentido na sua vida.
Segunda decisão: nada de temas comerciais ou consumistas. A
festa seria planejada especialmente para ele e suas particularidades. E, mesmo
assim, não sabíamos se ele iria perceber que a festa era sua, que era para
celebrar sua vida e, principalmente, para que se divertisse. Mas iríamos
tentar.
Terceira decisão: faríamos tudo nós mesmos. Sem buffet
contratado. Como nos bons e velhos tempos, onde nossas mães faziam tudo. Como eu
trabalho fora, tive que contar com a valiosa ajuda de um casal de amigos, de minha
mãe e de minha tia, que tradicionalmente faz nossos bolos de aniversários serem
aclamados após o parabéns.
Quarta decisão: chamaríamos algumas crianças do prédio, aquelas
que convivem com o Léo, e principalmente respeitam e cuidam dele toda vez que
descemos para brincar no playground ou na piscina.
E, por fim, a decisão mais acertada: fizemos as pistas
visuais referenciando todos os convidados. Como leram no texto A ponte épara atravessar, estamos fazendo um quadro de rotina, onde o Léo coloca as
atividades que serão realizadas no dia. Nos finais de semana, antes de sairmos
para qualquer lugar, colocamos neste quadro as pistas visuais com os rostos e
nomes das pessoas que vamos encontrar. Essa medida ajudou muito a diminuir o
grau de ansiedade dele quando saímos de casa.
Preparamos um painel no salão de festas e colocamos acima da
pista visual do bolo a foto dele, e o orientamos a colocar as pistas com a
imagem de cada convidado assim que eles chegassem.
Foi muito bonitinho. Para cada convidado que chegava, dávamos
a respectiva pista visual, que ele entregava para o Léo. O Léo então pegava a
pista e a colava ao lado da dele ou do bolo no painel, dava um beijo nos recém
chegados, e depois voltava a brincar.
Também alugamos uma cama elástica. Esse foi meu presente
para o Léo. Ele adora brincar no pula-pula e na cama elástica, mas todas as
vezes que saímos, ele encontra a maior dificuldade em brincar nesses brinquedos.
As crianças desconhecidas não entendem que ele é um menino especial, que não
entende regras, e deixá-lo “furar” a fila é romper com um paradigma fundamental
do universo infantil. Então, na maioria das vezes, ele chora, pois não entende
que tem que esperar sua vez. Geralmente ele faz uma birra, grita, chora, se
joga no chão, e isso atrai os olhares das pessoas que não nos conhecem, olhares
cheios de pré-julgamentos, taxando-o de “criança mal educada” e nós de “pais
que não educam”. E mesmo quando ele consegue entrar em um pula-pula, dependendo
de como as crianças estão brincando, ele não consegue ficar de pé, e muitas
vezes sai frustrado, irritado, e propenso a mais birras e choros. A respeito dos
olhares julgadores, sempre que consigo dou um jeito de informar aos desavisados
que o Léo é autista, e não mal educado. E em todas as vezes as pessoas resignificaram
seus olhares, o que reforça a importância de lidar com essa situação sem
vergonhas ou recriminações.
Desde que fiz o curso sobre ABA (Analise Comportamental
Aplicada), aprendi a lidar melhor com esses momentos disrruptivos. Mas ainda
assim não é fácil. Por este motivo ficou decidido que no seu aniversário ele teria
a cama elástica e reinaria sobre ela. E foi assim.
Fiz também uma mesinha de atividades, com papéis, cola,
tesoura, lápis de cor, adesivos e um varal com prendedores coloridos, para que
as crianças pendurassem suas artes. Deixei bexigas soltas no chão do salão e
outras penduradas. Fiz algumas coisas sem glúten para que o Léo pudesse comer à
vontade. Fizemos cachorros quentes, barquinhas de maionese e encomendei salgadinhos.
Minha mãe e minha amiga fizeram os docinhos e, como já disse, minha tia fez o
bolo. E nada de garçom servindo. Foi tudo como era antigamente nas festas de
crianças de famílias mais humildes e mais felizes.
As crianças brincaram muito. O Léo brincou muito. Estava
super feliz. Não saiu nenhuma vez do salão. No parabéns até deu uma assoprada
tímida na velinha. Brincou tanto que tivemos que buscar o carrinho de passeio
para que ele descansasse, e no fim da festa estava dormindo pesado.
Quando todos foram embora, ficamos apenas nós três: o Léo
dormindo, eu e o Ale. Nosso peito estava transbordando de alegria. Tivemos que
organizar tudo antes de subir para o apartamento, mas fizemos isso dançando,
cantando, felizes, sem cansaço ou esgotamento. Sabe aquela sensação de
felicidade plena? Era o que sentíamos.
Proporcionamos para nosso filho um entendimento de que todos
estavam ali para brincar com ele e celebrar suas conquistas. A alegria dele
quando viu suas terapeutas entrando no salão foi sensacional. Foi como se
corações saíssem dos seus olhinhos em direção a elas, como nos desenhos
infantis. Vou guardar aquele olhar de alegria e amor na minha memória para o
resto da vida.
Cada autista é de um jeito. Têm aqueles que não gostam de
muitas vozes ou de música alta; há aqueles que não gostam de bexigas ou papel
de presente, que não gostam de toques, ou tudo isso junto. Por isso as festas
de aniversário são sempre um dilema para nós, mães, pais e familiares. Mas,
mesmo assim, de alguma forma temos que celebrar a vida de nossos pequenos.
Temos que enxergá-los, fazer essa celebração por eles, e não apenas como um
evento social compulsório. Afinal essa é especificamente a grande dificuldade
deles: o social.
Então, por eles vamos romper com algumas convenções sociais.
Faremos de nossas crianças o tema de suas festas, e faremos a comemoração de um
jeito que elas curtam e se divirtam. É o mínimo que podemos proporcionar.
Uma semana depois do aniversário do Léo assisti a um vídeo
na internet onde uma mãe de uma criança autista distribuiu ráfias coloridas
para os convidados. Eles agitaram as ráfias ao invés de baterem palmas, e cantaram
o parabéns numa versão bem calma. O garotinho ficou tranquilo e, dava para
perceber, super feliz.
E é assim que vai ser daqui pra frente. Temos que nos reinventar,
desafiar conceitos estabelecidos em nome de uma realidade diferente. Nem sempre
saberemos se vai dar certo ou não. Mas uma coisa eu aprendi: minha prioridade é
o Leonardo, e espero que as pessoas compreendam que não é nada contra elas, mas
a favor de meu filho. Tudo o que eu quero é ver sempre aquele sorriso de
alegria, aquele pé descalço sujo de tanto brincar com os amiguinhos. Eu quero
que meu filho esteja inteiro em suas festas. Se ano que vem precisar ser
diferente, diferente será. Mesmo sem a certeza de que tudo sairá tão bem quanto
neste ano.
Mas quem tem certeza?
Amanda, muito bom! Vc está cada vez mais tranquila e o Leo tbm! Obrigada por compartilhar conosco e com as pessoas, isso apoia muitas pessoas pode saber! Beijo
ResponderExcluirObrigada Fernanda! O tempo vai passando e a gente vai aprendendo, mesmo que as vezes caindo ou tropeçando. Mas não podemos transfomar o caminho em algo mais difícil do que é.
Excluirbj