“O amor é ausência de julgamento”
Dalai lama
Acho que uma das condições do Transtorno do Espectro Autista
que o Léo apresenta que mais me fez explicar coisas aos outros é a condição
dele ser não verbal. Aliás, foi por
questões de atraso de linguagem que
começamos essa jornada.
São inúmeras as situações que passamos, pois conforme uma
criança neurotípica vai crescendo, uma progressão natural é o desenvolvimento da
fala. Crianças nos falam as coisas mais impressionantes. Todos os pais de
crianças neurotípicas têm surpresas com as observações sobre o mundo que seus
filhos fazem, e eternizam essas falas na memória.
É comum nós adultos puxarmos conversa com crianças quando as
encontramos. Já escrevi sobre isso no texto Elevador.
Situações parecidas com aquela continuam frequentes, mas não só nos elevadores.
Ocorrem também na padaria, na fila do mercado, na pracinha, etc. Sempre há
alguém disposto a falar com o Léo como se fosse uma criança neurotípica. E quando
isso acontece é inevitável explicar a condição de autista não verbal, e a reação
mais comum das pessoas é: “Nossa, nem dá para perceber que ele é autista, se
você não falasse”. Algumas ficam constrangidas e dizem “Ah, mas ele vai falar,
tenha fé em Deus. Deus só dá filhos especiais para pais especiais”. Quando o
Léo não responde e eu ainda não falei nada para a pessoa, geralmente vem a
pergunta: “Quantos anos ele tem?”. Felizmente temos encontrado muitas pessoas
que conhecem outras crianças autistas, que nos relatam suas experiências com
elas de uma forma naturalizada.
O Léo falou sua primeira palavra aos 11 meses. Lembro-me perfeitamente
deste momento: estava sentado no cadeirão, eu sentada na sua frente dando
comida na boquinha, ele olhou para o copo de água que estava sobre a mesa e
disse “ÁGUA, ÁGUA”. Foi emocionante. Daí em diante falava “água” quando estava
na banheira na hora do banho, para as ondas do mar, para a chuva. Falou ainda
mais algumas palavras importantes como Mamamá (mamãe), Papum (papai), nananá
(banana), peta (chupeta), tetê (mamadeira), abe (abre). O Léo reconhecia a
priminha Bia, a vovó e o vovó nas fotografias, fazia gestos com as mãozinhas
para cantar pintinho amarelinho, e a música “tra, lá, trá lalala...”, mandava
beijos e dava tchau, batia palminhas, dançava quando cantava a música do “pula
pula saci”, era um bebê risonho e ia no colo de todo mundo. Sabemos que tudo
isso mudou. Não sei precisar exatamente quando e como. Mas ninguém vai tirar
isso de nós, nem mesmo o Autismo, nem mesmo o esquecimento das pessoas que só
lembram de quando ele parou de tentar se comunicar.
Uma questão que nos consumiu foi dar voz a uma criança que
não fala. Existem autistas não verbais, existem autistas verbais, existem
autista com mutismo seletivo (fala quando quer e o que quer, e geralmente escolhe lugares e pessoas
para que essa fala ocorra, não se repetindo em outros lugares ou com outras
pessoas). Existe autistas com ecolalias (repete frases que ouve ou ouviu e que
por algum motivo ficou na memória). Geralmente essas frases são ditas sem
contexto adequado. Há também aqueles que passam anos sem falar e voltam a falar
depois, alguns morosamente outros fluidamente.
Para nós pais, saber de tudo isso serve para quê, se não
sabemos o que vai de fato acontecer com nossos filhos não verbais?
Serve para termos ESPERANÇA. Serve para não desistirmos de
ajudá-los. Serve para procurar terapias que estimulam a fala, e formas de
comunicação alternativas que possam fazer com que saibam que podem se
comunicar, para que saibam que falar não é a única forma de se expressar. Serve
principalmente para respeitar nossos filhos pelo que são hoje.
É quase senso comum que autistas são mais visuais do que pessoas
neurotípicas. Sendo assim, parte das
terapias é estruturada em pistas visuais (mostramos as imagens e falamos ao
invés de só ficar apenas na comunicação oral, organizamos quadro de rotinas em
casa, na escola, tudo com pistas visuais com lugares, pessoas, atividades que
irão realizar).
Foi então que as PECS(Picture Exchange Communication System, ou Sistema de Comunicaçãopor Troca de Imagens) surgiram na nossa vida, como uma comunicação
alternativa apoiada nas pistas visuais. Passamos então a adotar essa
metodologia de ensino para o desenvolvimento da linguagem do Leonardo. Existem
críticos a essa metodologia, acreditam que atrasa ainda mais a fala, uma vez
que a criança teria “preguiça” para falar, afinal ela consegue se comunicar sem
precisar se “esforçar” para falar, usando as imagens ou a escrita.
Muitas pessoas já vieram me perguntar sobre o que eu acho
disso. Pessoas sem filhos, com filhos neurotípicos, com filhos autistas verbais
e com filhos autistas não verbais. Acho muito interessante quando me
questionam, pois neste momento posso esclarecer que autista não falam por
existir alguma forma de “preguiça”, pois eles entendem tudo, são inteligentes e
não querem falar, ou então, que ainda não amadureceram o suficiente para falar.
Não devemos fazer esse tipo de analise, pois na questão do Transtorno do
Espectro Autista há uma deficiência neurológica que trás a dificuldade da
comunicação e linguagem. Portanto, essas pessoas tem uma real dificuldade em
organizar e estruturar seu pensamento para que haja comunicação, ainda mais no
campo verbal.
Portanto, mesmo utilizando a PECS, há um imenso esforço para
que a criança autista aprenda que pode se comunicar, tanto que não é uma
simples troca de imagem pelo objeto desejado. São fases diferentes a serem
avançadas para que a criança aprenda com autonomia o uso das PECS. Estas fases
dependem muito do desenvolvimento de cada criança, algumas demoram mais que as
outras para passar de uma fase para outra.
Dito isso, posso falar da nossa experiência.
Ensinar uma forma alternativa de comunicação não foi dar um
“apoio” para que não fale. Ao contrário, foi dar ao Léo a possibilidade de
saber que ele pode se comunicar, que
estaremos aqui para compreendê-lo, que saberemos dar-lhe aquilo para o que
precisar. A comunicação alternativa é a construção de uma ponte para que juntos
possamos atravessar. Nós nunca poderemos ir até o mundo particular do autista,
mas podemos ajudá-lo para que tenha uma ponte para quando quiser e puder
atravessar e também recuar, mas que possa vir até nós.
Como já disse, a metodologia da PECS tem várias fases, e por
isso é necessário encontrar profissionais que saibam fazer a terapia. E ainda
há a possibilidade de os próprios pais fazerem os cursos para serem aplicadores
para seus filhos. Mas é um longo caminho. Eu tive certa facilidade em estudar e
aplicar algumas técnicas, pois sou psicopedagoga e fiz um curso de ABA (Applied Behavioral Analisys, ou Análise
Comportamental Aplicada), onde tinha um módulo sobre comunicação alternativa,
mas o Léo faz terapias com profissionais especializados, o que facilitou uma rápida
aprendizagem dele.
Hoje ele tem uma pochete onde carrega um pequeno livrinho
com fitas de velcro com imagens de comidas, brinquedos , atividades e objetos.
Na primeira página tem uma tarjeta de velcro com a foto dele com uma pequena
mão estendida e a frase “eu quero”. Assim ele escolhe a imagem do que quer,
formando uma frase. Por exemplo: “Eu quero temaki”. Ele destaca a tarjeta
com a frase, dá para alguém e aponta com o dedinho indicador as duas imagens, o
adulto deve ler em voz alta para junto com ele: “Eu quero temaki”.
E se não tiver o que ele está pedindo? Acontece o mesmo que
você faria se fosse uma criança neurotípica, diz que acabou, ou que agora não
tem, ou que depois você dá.
Mas, o mais magnifico disso tudo é que eu sei o que meu
filho quer. O mais importante disso é que ele SABE que pode se COMUNICAR, que
pode PEDIR. Esse tipo de comunicação diminuiu as birras, as frustrações,
aumentou o grau de entendimento do sobre as coisas, sobre comandos. Hoje o Léo
é uma criança muito mais tranquila, integrada, segura e feliz, pois não fica
mais tanto tempo frustrado por não conseguir se comunicar. Claro que muitas
coisas ainda são difíceis de compreender. Por exemplo, ele ainda não consegue
expressar se está com dor, onde dói, se está com calor ou frio.
Enfim, há
limitações. Estamos construindo um caminho no qual a paciência é fundamental.
Mas ao dar essa alternativa para meu filho eu estou
respeitando sua identidade, respeitando quem ele é hoje, pois sim, temos a
ESPERANÇA que ele venha a falar. Ter esperança é diferente de ter certeza, sabe
porque? Porque meu filho não fala por que ele não quer. Ele não fala porque
isso é extremamente difícil para ele.
Recentemente, foi nos apontado a questão da Apraxia da Fala
Infantil, que é uma espécie de distúrbio motor da fala, caracterizado pela
dificuldade de programação e planejamento das sequências dos movimentos motores
da fala, resultando em erros na produção dos sons. Portanto, o Léo tem mais um
obstáculo para vencer. E a certeza que tenho é do esforço que ele faz, do
tamanho do guerreiro que ele é. E, para mim ele já um vencedor onde quer que
chegue, verbal ou não verbal.
Dizer que “tenho certeza que ele vai falar”, sabendo que ele
está me ouvindo e me compreendendo, pode gerar um stress muito grande para ele,
uma pressão desnecessária, daquelas do tipo que sofrem as crianças que não
conseguem ser aquilo que seus pais queriam que fossem. Por exemplo, pais que
idealizam o filho atleta, campeão olímpico, mas a criança não gosta do determinado
esporte, ou tem alguma outra limitação e o pai insiste que ela tem que superar,
pois tem certeza que será campeão. Não dá, né? Isso não se faz, embora saibamos
que ocorram diversos casos por aí.
O Léo é o que é. E ele é maravilhoso! Não dá para ficar
esperando ele falar para falar com ele ou achar ele interessante ou importante
só depois que falar. Temos que respeitá-lo. E para isso estou aqui. Ele é
diferente, e não inferior a ninguém, por não falar. Não vai receber esse tipo
de pressão de nós pais, e não vamos deixar que ninguém o faça. Por isso faço
tanta questão de esclarecer alguns pontos sobre o autismo não verbal sempre que
identifico uma situação em que há a necessidade.
Não vou idealizar meu filho. Mas também não vou perder a
esperança nele. Vou curtir ele como ele é hoje e como será amanhã. E sim, eu
sonho com ele moço batendo um papo comigo. Nos meus sonhos ele tem o cabelo
raspado, usa um brinco de argola, camisa de flanela xadrez azul e preta, calça
jeans com uma corrente do lado e coturno, praticamente um punk. Ele é alto e
tem a voz grossa, me chama de mãe, e eu penso “nossa é o Léo”, geralmente eu
acordo, com a barriga gelada. Tive algumas vezes esse sonho. Não me importo com
a aparência dele, é um moço lindo. No sonho o que mais me chama a atenção é
aquele moço grande me chamar de mãe e começar a conversar comigo. Não lembro do
que conversamos.
Quando falo que não tenho certeza se ele vai falar, não é
pessimismo, é respeito, pois sei o quanto é difícil isso para ele. Tenho
esperança que não seja impossível, mas ainda não sei como será. Pode ser que a
fala venha morosa, com ecolalias, ou mesmo nunca venha. Não dá para saber. Mas
o que vier vai ser comemorado, assim como hoje comemoramos cada fase da PECS,
cada nova surpresa que ele nos revela, cada palavrinha que fala e depois passa
semanas e semanas sem pronunciá-las. Apoiamos, estimulamos, acompanhamos as terapias,
estudamos, mas sem pressão, respeitando quem ele é hoje! Isso vai dar a base
sólida e segura para onde vai chegar.
E eu andei conversando com algumas mães de crianças não
verbais e concordamos que é muito desconfortável ouvir dos outros a frase:
“Quando ele quiser ele vai falar!”, como se nossas crianças não estivessem
fazendo nenhum esforço, como se não estivessem travando verdadeiras batalhas
internas para poder falar, como se fosse uma escolha deles ficarem em silêncio
e frustrados por não conseguirem se expressar. Muitas pessoas dizem isso sem
pensar no que de fato acontece com nossas crianças guerreiras, com nós mães
fênix, como se estivessem amenizando a situação, querendo dizer tudo vai ficar
bem. Eu procuro compreender as intenções de várias colocações, mas as vezes é
hora de nos posicionar e fazer também com que os outros possam entender nossas
intenções e nossa realidade.
Essas crianças fazem horas e horas de terapias, vão à
escola, passam por milhares de desafios sensoriais, são guerreiras. E o Léo é
um guerreiro, vejo nele a vontade de falar, o esforço que faz. Não depende de
um “ele vai falar quando quiser”. Ele já quer! Mas precisa aprender a se
reorganizar e isso pode levar tempo. Não tem problema, estaremos aqui para
ajudá-lo e respeitar cada fase de seu ritmo e deixar claro que nunca nos
decepcionará caso não fale e, principalmente, não será uma pessoa menos
importante se não falar, pois falar é apenas uma das tantas maneiras que o ser
humana tem para se expressar e vamos sempre respeitar o modo de comunicação que
o Léo alcançar.
E sim, ficaremos
muito felizes se ele falar. Mas meu filho já é um campeão da comunicação! E
terá sempre nosso respeito e apoio pelo o que é hoje e pelo que se tornará
amanhã incondicionalmente.