quarta-feira, 26 de julho de 2017

A longa jornada do desfralde de um menino autista

Esse é o segundo texto em que me proponho a falar deste tema tão importante para nós, responsáveis por crianças e jovens autistas: o desfralde e o uso adequado do banheiro.

No primeiro texto relatei as técnicas que tentamos, e a dificuldade de envolver a escola neste processo. Esse é o texto: http://observatoriolivre.blogspot.com.br/2016/11/jornada-do-desfralde-de-uma-crianca.html

Aqui, relatarei alguns problemas específicos que tivemos, pois o Léo tem a característica de ser um autista desafiador, ou seja, ele cria artifícios com o intuito de nos desafiar, algo que constantemente nos coloca em xeque.

Mas antes de começar a relatar os desafios impostos por ele, quero colocar algumas questões que precisam ser pensadas por você que lê esse texto e procura desfraldar a criança ou jovem com TEA.

  • ·       O quanto você realmente quer que o desfralde aconteça?
  •          Para isso, você está disposta a sacrificar seu tempo? Talvez muito tempo?
  •         Está preparada(o) para colocar todos que estão à volta da criança na mesma dinâmica, sendo firme e consistente no objetivo do desfralde e da técnica que implantará?
  • ·       Estão prontos para não ter mais fraldas em casa, a não ser aquelas que vão colocar de noite, após a criança já ter dormido?
  • ·       Lavar lençóis, forrar colchões, muitos panos de chão e desinfetante, muitos banhos, e deixar de molho, e depois lavar muitas calcinhas ou cuecas sujas? 
  •          O quanto estão dispostos de sair de casa com a criança sem fralda e levar de hora em hora num banheiro?
  •           Em caso de escapes, saber lidar com a situação de pessoas olhando e até às vezes julgando o incidente? 
  •           E, principalmente, o quanto estão dispostos a não desistirem e fazer as coisas com toda determinação, sem esmorecer, sem “Ah, uma vez ou outra vou colocar a fralda”? 

Pessoas falam que o desfralde leva em média 3 meses. Pode ser. Mas eu não serei otimista aqui.

 Prepare-se para lidar com isso mais de um ano. Se for em 3 meses, ótimo! Olha que bom! Mas no nosso caso foi 1 ano e 4 meses. Mas valeu muito a pena! Por nós e, principalmente, por ele!

A todas as questões acima nós respondemos “Sim”. E sim, mesmo assim foi muito difícil. Como contei no outro texto sobre a escola, muitas coisas não foram favoráveis à nossa situação de desfralde.

Usamos a técnica comportamental de anotar num caderno, já com uma tabela específica para facilitar as anotações, horários dos escapes, locais e datas. E tínhamos uma pista visual “Banheiro”, onde, de hora em hora, colocávamos na mãozinha do Léo e o levávamos até o banheiro, abaixávamos sua calça e dizíamos: “Xixi no vaso”. Por muito tempo ele não fazia. Às vezes acabava de sair do banheiro e fazia xixi na calça. Anotávamos todas as situações na tabela do caderno comportamental.



Ao sair de casa sempre levávamos a pista visual do banheiro, lenço umedecido, cuecas, calças, meias e, se estivesse frio, outro calçado. No calor a sandália do tipo crocs nos ajudava muito, pela facilidade de tirar e limpar.



Uma vez fomos num aniversário de um amigo. Estávamos começando o processo do desfralde. Logo que chegamos já o levei no banheiro, uma vez que demoramos a chegar e havia passado um pouco da hora de levá-lo ao banheiro. O Léo não fez o xixi no vaso (naquela época, ainda nunca tinha feito).

Voltamos para sala e encontramos uma amiga que estava com uma saia longa num tecido que o Léo adora, acetinado. Ele ficou lá sentado entre as pernas dela e o tecido da saia. Adivinhem. Sim, ele fez xixi na saia dela! Por sorte estávamos entre amigos que estavam a par da situação e não houve nenhum constrangimento.

Esse processo de levá-lo ao banheiro de hora em hora começou na clínica onde ele faz terapia, e logo em seguida começamos o processo em casa. Um dia recebemos um recado no caderno de anotação dizendo que ele tinha feito xixi no vaso na clínica, e a terapeuta nos escreveu de forma muito carinhosa sobre a felicidade deste momento. Aqui em casa demorou um pouco mais. Ele fazia xixi no vaso da clínica, mas não no de casa.

Na verdade o que achei mais difícil neste processo é que eram dois momentos, de apresentar o xixi que se faz em pé e o de sentar no vaso para fazer cocô. E ele se recusava a sentar. Desistimos temporariamente de sentá-lo, pois percebemos que ele aprendeu a fazer cocô de pé por conta da fralda. Então estipulamos que seriam dois momentos: primeiro, faríamos ele aprender a fazer xixi no vaso e, num outro momento, faríamos o processo do cocô. Tentamos dessa forma pois, a cada tentativa de sentá-lo no vaso ele fazia um escândalo, o que estava resultando numa aversão à entrada no banheiro de casa para as outras atividades, como tomar banho e escovar o dente.

Começamos no verão pela praticidade, mas logo chegou o outono e o inverno. E, no inverno, o trabalho dobra. As roupas são mais pesadas e difíceis de limpar, além de demorarem um tempão para secarem no varal. Dá vontade de chorar só de lembrar. Foi um momento difícil, pois eram vários escapes de xixi e TODOS os cocôs na cueca. Apelidei essa fase da minha vida de “A Fase da Merda”, pois, nesta mesma época, meu gato adoeceu do intestino e tinha diarreias constantes por toda a casa.
Água quente, água sanitária, vinagre, amaciantes, bicabornato, muitas cuecas, calças, shorts e meias de molho no varal.

Sou uma mulher como muitas outras, trabalho fora como professora, estico o trabalhos com a famigerada dupla jornada da vida doméstica sem empregada, tenho gatos de estimação, uma criança autista na fase de desfralde, projetos escolares, projetos sobre autismo, e uma vida social que segue. Tudo isso, mergulhado nas cuequinhas, calças e meias sujas de xixi e cocô do Léo.

A primeira vez que ele fez xixi no vaso em casa foi inesquecível. Ele foi para o banheiro sozinho, pegou a pista visual “Banheiro”, foi até o banheiro, abaixou a calça e fez xixi. Eu e meu companheiro ficamos olhando ele fazer tudo, espantados, sem ar, e assim que o xixi começou a cair dentro do vaso, começamos a correr pela casa, comemorando, rindo com os braços levantados, mas em puro silêncio, sufocando nossa vontade de gritar de alegria, pois era tanta alegria que poderia assustar o Léo. 

Depois dessa comemoração, fomos ao banheiro e demos parabéns ao Léo, falamos: “Isso mesmo, Léo! Xixi é no vaso!”, e o cobrimos de carinho e elogios.

Foi uma merecida comemoração, mas logo percebemos que a jornada estava apenas começando, pois entre esse primeiro xixi no vaso e os próximos demorou um bom tempo.

Meu pai percebeu que os escapes de xixi na casa dele aconteciam na sacada. E, como eu já disse, aonde o Léo ia ele levava o caderninho de anotações. Meus pais faziam tudo direitinho, levando-o ao banheiro de hora em hora, mas nada adiantou. O escape era na sacada. Um dia, meu pai, ao perceber que ele ia fazer xixi na sacada, correu e levou-o para um ralinho que tem na sacada e o direcionou para fazer xixi no ralo. O Léo é muito ligado ao meu pai, e logo aprendeu a fazer xixi no ralo. 

Começou a entrar no banheiro de casa e fazer xixi no ralo do chuveiro, mas também fazia no ralo da minha sacada.

Era um hábito mais prático, é claro, mas ainda longe do ideal. Xixi é no vaso. Fomos orientados pelas terapeutas de que não poderíamos reforçar o xixi no ralo, então entramos num processo de desconstrução deste aprendizado para levá-lo de volta ao banheiro. Não falaríamos nada, era para agir como qualquer outro escape em qualquer outro lugar. Após o xixi o levaríamos ao banheiro para fazer a higiene e diríamos: “Xixi no vaso”. Mais nada, para não reforçar o xixi fora do banheiro.

Aliás, essa é uma dica importante: quando há escapes, não é para falar absolutamente nada para a criança, do tipo “Ei, escapou de novo!”, “Você já sabe que xixi é no banheiro”,  “Ai meu deus, de novo?!”. Não fale nada para não reforçar o xixi fora do lugar. Diga apenas “Xixi no vaso”, de maneira calma e tranquila quando estiver no banheiro antes de fazer a higiene. Para o cocô é a mesma coisa. Tire o cocô da cueca no banheiro e, na frente da criança, jogue no vaso, diga “Cocô é no vaso”, dê descarga, dando “Tchau cocô!” e faça a higiene.

E assim fizemos por muito tempo. Aumentamos a quantidade de líquidos oferecidos no dia, de modo a conseguirmos pelo menos algum xixi no vaso e poder elogiar e fazer o reforço positivo necessário no momento certo. E foi funcionando. Ele paulatinamente começou a aumentar a frequência que fazia xixi no vaso e a diminuir os escapes. Geralmente os escapes eram porque nós começamos a vacilar e aumentar os espaços de idas ao banheiro não mais de hora em hora. Erro nosso. Ainda não estava consistente o suficiente e voltaram a aumentar os escapes.

E, pior que aumentar os escapes, nosso maior erro talvez fosse achar que porque algumas vezes nos dia ele fazia no vaso já estava quase certo que desfraldasse. De repente, começamos a afrouxar as “regras” de anotar, de levá-lo com constância ao banheiro, e quando havia escape, começamos a falar com ele antes de leva-lo ao banheiro. Eu e meu companheiro, ou eu e minha mãe ou pai, ficávamos agitados “Léo fez xixi!” e era aquele corre-corre. Foi quando ele percebeu toda a situação e começou a nos controlar. Toda vez que fazia xixi em casa ele ia para a sacada, olhava para gente com aquela cara de sapeca, e fazia xixi na calça. Aquilo me dava uma bronca! Afinal, ele sabia onde tinha que fazer. Em todos os outros lugares que frequentava já fazia no banheiro: na escola, na clínica, na casa de alguns amigos. Mas o negócio era pessoal. Era nos desafiar. Foi quando conversamos de novo com a terapeuta e ela nos recomendou: “Não desistam. Não falem nada, não expressem nada no olhar ou em gesto. Levem para o banheiro e só lá falem com ele, sem muita expressão. Não desistam, há muito trabalho pela frente!”.

Então foi assim, adotamos aqui em casa a técnica de fazer “Cara de Pôquer”. Toda vez que ele fazia xixi daquela maneira, nos observando, eu olhava para meu companheiro, ou ele para mim, e um de nós dizia: “Cara de Pôquer, respira fundo e vai”. Um ia limpar e o outro fazer a higiene. E, quando um de nós estava sozinho, primeiro a higiene e só depois limpar a poça de xixi, ainda com cara de pôquer. Foi complicado, mas fizemos tudo como a terapeuta nos recomendou.

E, depois de mais ou menos um mês, ele voltou a fazer xixi com consistência no banheiro, sempre recebendo muitos elogios a cada xixi no vaso, muita festa e atenção. Até hoje recebe elogios, não tão festivos como no começo, mas sempre elogiamos, principalmente quando estamos fora de casa.

Assim que o xixi ficou consistente passamos para a fase do desfralde do cocô. O passo mais complicado foi fazê-lo sentar no vaso. Usamos aquele suporte infantil, mas ele não aceitou. Às vezes, usando o celular com seus vídeos favoritos para distraí-lo, ele sentava um pouco, mas ainda não conseguia relacionar sentar no vaso com ato de fazer cocô. Percebemos uma frequência nas horas do dia em que ele fazia cocô: fazia de manhã, na clinica, e no fim de tarde na EMEI.

Na clínica ele logo começou a fazer no vaso. Já na EMEI ele ficou um bom tempo tendo escapes, e era constante eles mandarem uma sacolinha com a roupa que ele havia sujado. Foi assim até o dia que a AVE (auxiliar de vida escolar) percebeu que ele ia para trás da cortina e fazia força quando ia fazer cocô. Foi quando ela passou a pegá-lo neste momento e levá-lo ao banheiro. Alguns dias conseguiu, outros não. Mas deste momento em diante ele passou a sentar no vaso e a relacionar o cocô com o vaso. Foram mais de 4 meses de escapes.
O verão foi uma loucura, pois moramos num prédio que possui piscina, e o Léo adora água. Tivemos que ensiná-lo a não fazer xixi na piscina, pois ainda colocávamos aquela fraldinha de piscina, mas começamos a perceber que ele associava a fralda a não precisar fazer xixi ou cocô no vaso. Então até a fralda de piscina abolimos. E o jeito era ficar atento, levando ao banheiro de 30 a 30 minutos quando estávamos na piscina, e não tirar o olho dele.

Não vamos deixar de ir à piscina, por isso tenho que educá-lo. É difícil, mas é possível. Para tentar prevenir possíveis casos de bullying por conta de eventuais escapes, conversei com todas as crianças que frequentam a piscina e com seus pais, quando presentes. Todos viram que eu e meu companheiro estávamos atentos e dispostos a ensiná-lo, sem que tivesse que privá-lo de brincar e socializar com as crianças, e que não se tratava de uma criança mal educada, mas de uma criança diferente, que aprende de maneiras diferentes em um tempo diferente. Não aprende sozinha. Precisa ser educada, e dá muito trabalho.

E continuamos. A cada cocô bem sucedido fazíamos aquela festa. Muitos elogios, com muita alegria. Colocamos pistas visuais no banheiro de um menino sentado no vaso escrito “Cocô” e outro com o menino de pé escrito “Xixi”, que sempre apontamos para ele nas horas que o levávamos ao banheiro.



Aonde íamos o levávamos de hora em hora ao banheiro. Muitos escapes aconteceram em lugares inapropriados, e sim, passamos por alguns constrangimentos. Muitas vezes achei que não ia conseguir. Lavei muitas cuecas do Léo chorando no tanque, sem que alguém me visse.

Mas nunca pensei em desistir. Mudamos de estratégia, lutei na escola, levei a situação para diretoria de ensino quando achei que precisou, pedi ajuda, chorei, sonhei. Mas não desisti.

Resultado: Hoje temos uma criança independente, que toda vez que vai ao banheiro meu coração se enche de orgulho. Ele ainda não sabe se limpar. Mas tenho certeza que vai aprender logo.

Demorou um ano e quatro meses. Todas as estações do ano, e algumas mais. Fora o tempo que tentei antes do diagnóstico de TEA (que foi mais frustrante que qualquer outra coisa).

Por quanto mais tempo eu passaria por isso?

Hoje que eu sei o que é ter uma criança com TEA desfraldada, inclusive à noite, e te respondo: 

Tentaria até conseguir. Pois, se não deu certo, é porque algo precisa ser revisto. Mudar a estratégia, analisar alternativas. E não apenas na criança, mas no tanto que nós temos que nos doar para que dê certo, no tanto que temos que fazer, no tanto que temos que mudar nossos hábitos, nos reinventar, nos observar e perceber se não estamos sendo consistentes na proposta ou se realmente é hora de mudar a abordagem. Ou ainda se somos nós que ainda não fizemos o possível, esperando que a criança o faça?

É possível que haja histórias diferentes por aí, que levem menos ou mais tempo e esforço que a nossa. O importante é não desistir, pois sempre haverá uma alternativa. É só questão de prestar atenção aos detalhes e encontra-la. É também preciso reconhecer que não temos respostas, que precisamos de ajuda, que precisamos, sim, de profissionais especialistas e, mais do que nunca, usar de nossa sensibilidade, pois quem mais conhece tão bem nossos filhos? Mas não podemos ceder às adversidades encontradas pelo caminho, temos que acreditar nos nossos filhos, e não deixar que ninguém nos diga o contrário. Eles vão conseguir.


Nós vamos conseguir. 


sábado, 8 de julho de 2017

Ciranda da Inclusão



Sentar para escrever está cada vez mais difícil. A vida anda corrida, muita coisa para fazer, o que faz com o pouco tempo livre que tenho seja tomado por outras atividades que não são sentar e escrever. 

Fico mentalmente escrevendo textos na minha cabeça, elaborando argumentos sobre situações vividas que gostaria de escrever para compartilhar essas vivências cheias de sentimentos, ideias, frustrações, conquistas.

Estou escrevendo esse texto porque aconteceu algo surpreendente, que merece ser registrado e compartilhado, sobre o processo de Inclusão na Escolar no ensino infantil do Leonardo.

Ano passado escrevi o texto sobre a festa junina na escola, quando fomos literalmente segregados. Para quem não leu ou não lembra, o texto é este aqui: http://observatoriolivre.blogspot.com.br/2016/06/hoje-cinzas-mas-sempre-fenix.html 

Neste relato conto como foi triste ver meu filho completamente fora das atividades da escola, sem nenhuma tentativa de inclusão. Não foi apenas o fato de não ter dançado. Quem já não viu uma criança se recusar a dançar a quadrilha ou qualquer outra apresentação que tenha ensaiado? Mas nada havia sido feito pelo Léo, com aquela desculpa: “Ele não faz, é o tempo dele!”. Se nós pensássemos assim, é bem provável que meu filho estivesse até hoje sentado olhando um ventilador ou rodando rodinhas de carrinho.

Com pessoas que tenham o Transtorno do Espectro Autista, temos que achar caminhos, persistir com consistência, sem forçar, mas não podemos deixar tudo do jeito deles sem sequer tentar ensiná-los, afinal eles têm a capacidade de aprender. O que precisamos é achar o caminho de como fazer para ensiná-los. E com o Léo é assim. Ano passado já havia dado grandes passos no caminho de novos aprendizados.

Mas este ano a vida nos deu uma surpresa: duas novas professoras, que chegaram com muito cuidado, com muita dedicação, para incluir o Léo na turma. Duas professoras que estão dispostas ao diálogo tão importante para a Inclusão Família/Escola/Terapeutas. Todo um diálogo que já havia sendo feito, mas que de repente passou a fluir com muita naturalidade.

Pela primeira vez desde que o Léo entrou na escola, desde o berçário, que não pude comparecer na data marcada da reunião de pais. Marquei então um dia para conversar com as professoras, separado do coletivo de pais.

Uma reunião simples, onde estavam presentes eu, as professoras e o coordenador. Esse tipo de reunião deveria ser normal, mas, para nós, pais que tem filhos especiais e com os constantes problemas relacionados à inclusão, o mero normal pode ser maravilhoso.

Na reunião me mostraram um material adaptado, que não sabiam dizer se era o ideal para o Léo, mas que haviam pesquisado e produziram para ele, e que a estagiária e a professora faziam junto com o Léo na sala de aula. Contaram com propriedade as peripécias do Léo na hora do parque e do lanche. Quem não ficaria feliz ao ver esse trabalho das professoras?

Essa reunião foi no final do 1º. Trimestre. Então questionei sobre a festa junina. Uma das professoras me disse que já estava pensando sobre isso há um tempo, e como o Léo tem uma estereotipia de agitar “hastes” (lápis, varinhas, galhinhos de árvore, bandeiras, etc.) ela pensou em usar esse interesse dando um significado, para que ele participasse e que também seria de interesse das outras crianças. A professora escolheu a música “Ciranda do anel”, de Bia Beltran, https://www.youtube.com/watch?v=h79ibs2jNvQ onde as crianças teriam varinhas com fitas azuis e brancas, e as balançariam durante a dança representando o mar.

Agora, pensem: vocês imaginam o tamanho do meu coração quando a professora me disse isso, depois de tudo que ocorreu no ano anterior? Para nós, nem era mais importante se o Léo dançaria ou não no dia. Sabíamos que ele participaria nos ensaios, junto com as outras crianças, dentro do processo das atividades, e fazendo parte do grupo nos próximos meses.

Estaria incluído.

E os ensaios aconteceram. Sempre que ia buscar o Léo no final do dia alguma criança ou funcionário comentava que o Léo estava gostando da dança. É claro que isso criou uma expectativa em todos. O Léo é muito querido e respeitado na escola. Como sabem, sou professora, e sei muito bem como são esses desafios de montar projetos e ver o resultado no dia, ainda mais quando se trata de Inclusão. 

Tenho guardada comigo uma dança que organizei num 7º Ano, “Cavalo Marinho de Pernambuco”, onde o Boi foi um aluno com dislexia e TDAH. Lembro-me da surpresa de vários pais e alunos quando a dança da turma acabou e o aluno saiu de baixo do Boi e todos viram que aquele lindo Boi foi conduzido por aquele aluno em especial. A conquista é dele, mas fiquei cheia de orgulho da superação do meu aluno, da alegria que ele sentiu por ter sido o personagem querido da festa. São coisas que nós professores guardamos para a vida toda.

No dia da festa, o Léo não dançou. Ao chegarmos à escola, viu uma garotinha com uma boneca na mão e começou a andar atrás dela e da família. Demoramos em perceber que ele queria a boneca. A família da garotinha estava com outras crianças, e muito gentilmente deram uma maçã do amor para o Léo, que ele não recusou. Depois ofereceram algodão doce, que ele recusou meio bravo. Na hora da dança peguei-o no colo e levei para a quadra. Todas as crianças já estavam posicionadas, só esperando pelo Léo. Mas ele não quis saber, queria sair de qualquer jeito. Recusou até a pegar a varetinha com fitas. Todos tentaram de alguma forma fazer com que ele ficasse, mas ele saiu da quadra, correu para a barraca de churrasco e entrou na fila. Imaginei que devia estar com fome, ou queria um churrasco, pois ele adora, mas não era nada disso. Na frente dele, na fila, estava a família da garotinha com a boneca. Foi então que percebemos que ele queria a boneca.

Fomos atrás de uma brincadeira que desse a tal boneca, pois era uma prenda da festa junina, mas não havia mais em nenhuma barraca. Foi quando a garotinha e sua mãe apareceram e deram a boneca para o Léo. Ele brincou uns 20 minutos com a boneca e depois entregou para o vovô, que também estava na festa. Devolvi a boneca para a garotinha.

As professoras vieram me procurar e lamentaram o Léo não ter dançado, mas eu estava tão feliz com o processo de Inclusão, que, de todo coração, desta vez nem me importei por ele não ter dançado. O diálogo com aquela família da garotinha e todas as outras intenções de respeito e inclusão que encontramos nos deu um sentimento de tranquilidade e confiança.

Mas não paramos por aqui. Fomos ver a dança de um amiguinho do Léo que também é aluno de inclusão na escola municipal que fica logo em frente da EMEI. Assistimos o amiguinho dançar todo feliz a dança das fitas. E, logo após, veio uma dança do Boi mamão, e o Léo invadiu a quadra e foi dançar junto com as crianças. Era uma turma de ensino Fundamental, e carregavam um arco cheio de fitas, que balançavam. Imagino que ele reconheceu e foi para dentro dançar. O local da apresentação estava tão cheio que não conseguia ver a dança. Cheguei a perguntar para uma moça que estava na minha frente, “Tem uma criança pequena ai na dança?” Ela respondeu que sim, afastou o corpo e apontou. Pude ver o Léo no meio de pré-adolescentes, acompanhando a dança. Quando acabou e todos aplaudiram, ele pulava e batia palmas, todo animado.

Eu sei que tudo isso deveria ser normal dentro do processo de inclusão. Sonho e luto para que a Inclusão possa chegar a estágios tão naturais e felizes como estes. Dá trabalho, mas, por hoje, reconheço o empenho destas professoras e toda equipe, estagiária, AVE, todos desta escola que se desafiam junto com o Léo.

Essa é uma história que vale a pena sentar e escrever.

Agora, um pouquinho dos ensaios: